“Quem não vive para servir, não serve para viver”

Armando Alexandre dos Santos

 

Concluamos hoje a série de artigos sobre o trabalho rural na Idade Média. Vejamos agora no que consistia, precisamente, a servidão de gleba na Europa Medieval. Muitos manuais didáticos, simplificadores, dizem que era uma forma de escravidão. De fato, no latim, o substantivo “servus” designava o escravo, mas era radicalmente diversa a condição do “servus” medieval, como esclarece Pernoud: “A condição do servo [medieval] é totalmente diferente da do escravo antigo: o escravo é uma coisa, não uma pessoa; está sob a dependência absoluta do seu dono que possui sobre ele direito de vida e de morte; qualquer atividade pessoal é-lhe recusada; não conhece nem família; nem casamento, nem propriedade. O servo, pelo contrário, é uma pessoa, não uma coisa, e tratam-no como tal. Possui uma família, uma casa, um campo e fica desobrigado em relação ao seu senhor logo que pague os censos. Não está submetido a um patrão, está ligado a um domínio: não é uma servidão pessoal, mas uma servidão real. A restrição imposta à sua liberdade é que não pode abandonar a terra que cultiva. Mas, notemo-lo, essa restrição não deixa de ter uma vantagem, já que, embora não possa deixar a propriedade, também não podem tirar-lha; esta particularidade não estava longe, na Idade Média, de ser considerada um privilégio (…) mais ou menos aquilo que seria nos nossos dias uma garantia contra o desemprego. O rendeiro livre está submetido a toda a espécie de responsabilidades civis que tornam a sua sorte mais ou menos precária: se se endivida, podem confiscar-lhe a terra; em caso de guerra, pode ser forçado a tomar parte nela, ou o seu domínio pode ser destruído sem compensação possível. O servo, esse, está ao abrigo das vicissitudes da sorte; a terra que trabalha não pode escapar-lhe, da mesma maneira que não pode afastar-se dela. Esta ligação à gleba é muito reveladora da mentalidade medieval, e, notemo-lo, a este nível, o nobre está submetido às mesmas obrigações que o servo, porque ele tampouco pode em caso algum alienar o seu domínio ouseparar-se dele de qualquer forma que seja: nas duas extremidades da hierarquia encontramos essa mesma necessidade de estabilidade, de fixação, inerente à alma medieval, que produziu a França e de uma maneira geral a Europa ocidental. Não é um paradoxo dizer que o camponês atual deve a sua prosperidade à servidão dos seus antepassados; nenhuma instituição contribuiu mais para o destino do campesinato francês; mantido durante séculos sobre o mesmo solo, sem responsabilidades civis, sem obrigações militares, o camponês tornou-se o verdadeiro senhor da terra; só a servidão poderia realizar uma ligação tão íntima do homem à gleba e fazer do antigo servo o proprietário do solo. (idem, p. 43-44)

Deve-se considerar também que a condição de servo, na Idade Média, nada tinha de desonroso. Na ótica medieval, servir era algo muito digno, não somente quando se tratava de um nobre que servia ao rei ou a outro nobre mais elevado, mas também quando era um plebeu que se colocava ao serviço de um nobre, pela cerimônia da recomendação. O rei era considerado o primeiro e o maior servo do reino, pois servia ao bem comum; e o papa era, de acordo com a fórmula tradicional usada desde o pontificado de São Gregório Magno, no início da Idade Média, o “servo dos servos de Deus”.

Hoje, na ótica atual, servir pode parecer algo desprezível e aviltante, mas na época que estamos estudando se entendia o contrário. Ter um senhor era honroso, pois o servidor de certa forma se alçava ao nível do seu senhor. De algo disso podemos fazer ideia pelo sistema de compadrio e apadrinhamento, ainda vigente em certas regiões do Brasil: ter um padrinho importante é algo prestigioso. “Quem tem padrinho não morre pagão”, dizia-se antigamente, ou seja, não fica desamparado.

Até hoje, a expressão “um seu criado”, ou “um seu criado para servi-lo”, é usada em regiões portuguesas e, mesmo, do interior do Brasil por alguém que se apresenta, ou cujo nome é chamado em voz alta. No século XIX, a fórmula consagrada com que um pai anunciava aos amigos o nascimento de um filho, era comunicar a eles que “nesta casa V. Excia. tem mais um criadinho ao seu serviço”. Na Alemanha, ainda é uso, em certas regiões, saudar os amigos em latim, dizendo simplesmente “Servus!” ou “Serva!”, se for mulher. Significa essa saudação que a pessoa se coloca ao serviço do outro. E na Itália se usa até como saudação inicial de uma conversa o “ciao”, transformado no Brasil em “tchau” e aqui usado apenas como forma de despedida. Pouca gente sabe que “ciao” é a contração da palavra “schiavo”. Dizer “ciao” significa colocar-se à disposição do outro, como se fosse um escravo ao serviço do outro.

“Quem não vive para servir, não serve para viver” – ensina com toda a razão a sabedoria popular.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutorna área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

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