O trabalho rural na Idade Média

Armando Alexandre dos Santos

 

No que diz respeito à divisão de categorias sociais na Idade Média, é um tanto simplificadora a enumeração geralmente feita, de Clero, Nobreza e Povo. De fato, essa divisão era bem demarcada no período do Ancien Régime, que precedeu a Revolução Francesa, mas no Medievo seria preciso matizá-la. Sem dúvida, era válida a divisão de funções, entre os que rezavam e ensinavam (Clero), os que lutavam e governavam (Nobreza), e os que trabalhavam (Povo), mas a interpenetração dos três grupos sempre foi muito mais intensa do que se imagina e, dentro de cada um dos grupos, a variedade de situações também era imensa.

Foquemos nossa atenção especificamente sobre o trabalho rural, no Medievo. Todos os manuais didáticos costumam dizer que havia senhores e servos. Ou seja, na terra, quem não era dono dela era servo e trabalhava exclusivamente, ou quase exclusivamente, para quem era o senhor.

Como registra a historiadora francesa RéginePernoud, nessa divisão sumária, “só há lugar para os senhores e para os servos: de um lado a tirania, o arbitrário e os abusos de poder, do outro os miseráveis, sujeitos aos impostos e aos dias de trabalho gratuito, à vontade dos senhores” (Luz sobre a Idade Média. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997, p. 41). Essa é ideia que normalmente se tem, quando se fala em trabalho rural na Idade Média.

No entanto, a realidade é bem mais matizada. O direito do senhor sobre o solo não era exatamente o mesmo que entendemos hoje como sendo o do proprietário, que goza, de acordo com a fórmula latina consagrada, do “jus utendi, fruendiac abutendi”, ou seja, possui o direito de usar, fruir e dispor plenamente dos seus bens. O direito senhorial sobre a terra era de outra natureza, bastante mais limitado e comportava uma importante limitação quanto ao que se poderia chamar, de modo bastante anacrônico, como preenchimento de uma função social. Por outro lado, o terceiro estado, na vida rural, não era composto somente de servos. Entre a liberdade absoluta e a condição servil havia muitas situações intermediárias. Para início de conversa, o camponês, mesmo servo, muito facilmente adquiria o direito de não poder ser tirado da terra. Bastava-lhe permanecer nela, trabalhando, um ano e um dia, ou seja, o período de um ano inteiro. Se tal acontecesse sem que o senhor da terra o expulsasse, isso bastaria para que o camponês ficasse seguro de que não mais poderia ser expulso dali, até morrer.

Acresce, ainda, que o Direito Medieval tinha duas fontes precípuas, a Lei Natural e os Costumes. O Direito Consuetudinário, que ainda prevalece na Inglaterra, nos Estados Unidos e em países de formação anglo-saxônica, é profundamente diverso daqueles, como o Brasil atual, em que prevalece a visão positivista do Direito, segundo a qual a fonte do Direito é a lei escrita e promulgada.

No Direito medieval, as leis formalmente escritas e promulgadas eram muito pouco numerosas, de modo que os costumes, entendidos como fonte do Direito, tinham uma importância imensa. Era deles que se deduzia o que devia ser feito. O fato de determinado procedimento ser costumeiramente praticado não só o legitimava, mas podia até chegar a torná-lo obrigatório. No Medievo, de acordo com o aforismo latino “plurimaeleges, pessimarespublica” (quando são muitas as leis, é péssima a administração pública),entendia-se que as leis somente deviam ser promulgadas em caso de necessidade, e não arbitrariamente, por mero intuito dirigista.  “A leideve ser honesta, justa, possível, conforme à natureza, apropriada aos costumes do país, conveniente ao lugar e ao tempo, necessária, útil, claramente expressa para que não se oculte nela nenhum engano, e instituída não para satisfazer a algum interesse privado, mas para a utilidade comum dos cidadãos” – escreveu São Tomás de Aquino (1225-1274) na Suma Teológica (I-IIae, qu. 95, a.3), repetindo e endossando o ensinamento de Santo Isidoro de Sevilha (+ 636). Tão prejudicial pode ser a introdução de uma lei nova, que São Tomás considerava muitas vezes preferível manter uma lei menos perfeita, mas já assentada nos costumes, a substituí-la por uma lei melhor, mas que, por não ter como base o costume, causasse transtornos ao bem comum (Suma Teológica, I-IIae, q.97, a.2).

Os costumes tinham tanta força, no passado medieval, que bastava algo ser praticado costumeiramente para que se impusesse como devendo ser praticado, sem necessidade alguma de lei escrita e formal. A única limitação dos costumes eram os ditames da Lei Natural. Um costume que não estivesse de acordo com esses ditames, seria um mau costume, ou seja, um costume vicioso e deveria ser extirpado. Não obrigaria nem moral nem juridicamente. É nesse sentido que valia o princípio geralmente aceito de que “lex injusta non obligat” – a lei injusta não obriga.

A variedade de costumes era imensa na organização medieval, porque a noção de liberdade também era incomparavelmente maior do que é hoje, quando um Estado organizado teoricamente é o garantidor das liberdades individuais e, na prática, muitas vezes constitui a maior ameaça a essas mesmas liberdades.

Prosseguiremos o assunto na próxima semana.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutorna área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

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