A condenação da libertina

Camilo Irineu Quartarollo

 

Emma e Léon passeiam anonimamente em algum cabriolé em movimento sob luar de Paris do século XIX. Flaubert somente deu um foco de luz com o livro Madame Bovary, mas foi levado ao tribunal. O passeio furtivo pelos arredores parisienses com o amante provocava as fantasias da sociedade francesa.

No tribunal, o promotor de justiça Ernest Pinard dispara contra o livro, “poesia do adultério”. Emma casara-se com o Sr. Bovary, o primeiro amante foi Rodolphe, um dom Juan que logo a deixou; Léon fora o mais constante. Para o promotor a obra de Gustave Flaubert era perigosa para as mulheres jovens, as perverteria, o livro instigava a aventuras. Emma Bovary comete adultério, destrói a família e antes do suicídio dilapida a fortuna do marido que descobre tempos após a morte que Emma o traía.

Flaubert ganhou um leitor minucioso na pessoa do promotor Pinard, que confessa o talento do autor e da “pintura admirável” que faz na obra, mas “execrável do ponto de vista moral”.

Antes de Flaubert outros autores já tinham passado pelo crivo da Justiça francesa como Baudelaire e até mesmo o escritor católico Barbey d’Aurevilly por suposta imoralidade de seus textos e de sua coletânea Les Diaboliques.

Evidentemente as mulheres não são como as etiquetas e crinolinas do século XIX ou belos quadros de Renoir, nem vivem a carregar livros sobre a cabeça para andarem eretas. Tropeçam como Emma, caem e se levantam a vida toda, e são mais cobradas que os homens, na época detentores do pátrio poder.

Quatro décadas depois, aqui nos trópicos de Machado de Assis, talvez tenha caído algumas gotas desse orvalho de Paris sobre os “olhos de ressaca” de Capitu.

A defesa do escritor Flaubert foi por Jules Sénard, advogado de larga experiência e ex-presidente da Assembleia Constituinte e ex-ministro do Interior. Contudo, Sénard, não defendeu Emma, não poupou a protagonista. Aproveitou o mesmo argumento da acusação para o livro, mas com interpretação contrária. O advogado de Flaubert argumenta que mesmo com a imoralidade à flor da obra, esta não levaria as leitoras à prostituição, mas ao horror da promiscuidade, tendo em vista o triste fim de Emma. O autor foi absolvido, Emma não.

Emma, como libertina, foi condenada duas vezes num tribunal da França, pela acusação e defesa. O livro, lançado em 1857, torna-se campeão de vendas. O título do livro parece-me uma ironia de Flaubert à família burguesa e ao estereótipo de esposa recatada, bela e do lar.

Depois de a obra aceita no âmbito judicial, não era crime, os estudiosos abriram os olhos para mulheres como Emma, que “sonham demais com o seu príncipe” – diagnosticavam — e deram o nome de bovarismo. Com o despontar da psicologia freudiana, surge a figura da “mulher histérica”, diagnóstico-chavão para casamentos fracassados. O feminismo de Simone de Bevoir e a queima dos sutiãs viriam mais tarde. Mesmo com a pós-modernidade não se aboliu o cabriolé, nem os passeios pelo Sena, Louvre ou subidas pela torre Eiffel.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor do livro Crises do filho do meio, dentre outros

 

 

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