Os mortos e o narcisista

Almir Pazzianotto Pinto

 

O Brasil ultrapassou a marca dos 500 mil mortos pelo Covid. É como se, no prazo de pouco mais de um ano, toda a população de cidade de grande porte desaparecesse sem deixar vestígios.

O primeiro a morrer emitiu sinais da gravidade da moléstia. Médicos infectologistas de renome alertaram os respectivos governos sobre situação que exigia medidas enérgicas e imediatas. A Organização Mundial da Saúde (OMS), como agência subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU), tratou de fazer o que lhe competia na coordenação dos esforços internacionais para o combate ao coronavírus.

O desconhecimento de medicamentos de comprovada eficácia impunha providências de caráter protetivo. De imediato a sociedade foi alertada sobre a necessidade da máscara, de evitar aglomerações e de reforçar medidas de higiene pessoal como lavar frequentemente as mãos e utilizar álcool em gel. Simultaneamente, os principais laboratórios intensificaram a pesquisa de vacina, a partir de experiências acumuladas no terreno da virologia.

No Brasil passamos pelo constrangimento de assistir a irracional transferência do problema da esfera científica para a arena política. Arbitrário e narcisista, o presidente Jair Bolsonaro ignorou que a União é fruto de pacto federativo celebrado entre Estados membros e Municípios, para tentar assumir, com exclusividade, não só a coordenação, como a decretação e execução de medidas de combate à pandemia. Quando o Supremo Tribunal Federal, regularmente provocado, fez valer a Constituição na parte que trata da Organização Político-Administrativa do Estado (Título III, artigos 18/36), S. Exa., qual criança mimada se exasperou e fez da decisão da Alta Corte fator de descontrole emocional.

A Comissão Parlamentar de Inquérito, em andamento no Senado, recolheu depoimentos reveladores. Sessões televisionadas e reportadas pela imprensa evidenciam a conduta compulsiva e negativista do presidente da República na condução do Ministério da Saúde, interferindo no trabalho dos médicos ministros e dos auxiliares diretos, para cobrar o uso da cloroquina, desestimular a máscara, incentivar aglomerações ao seu redor.

A nomeação do ineficiente general Eduardo Pazuello e a permanência por mais de ano à frente do Ministério, caracterizam demonstração de força incompatível com o Estado Democrático, no qual o presidente da República é servidor público, eleito para cumprimento de mandato de quatro anos à frente do Poder Executivo.

A Constituição é incisiva. O presidente da República pode ser investigado, pela Câmara dos Deputados pelo cometimento de crime de responsabilidade, e julgado pelo Senado (Constituição, Art. 86). Se está confiante na inocência, não há razão para se furtar a depor. Tem para o defender a bancada bolsonarista comandada na Câmara pelo deputado Arthur Lira e, no Senado, pelo filho, senador Flávio Bolsonaro.

A presença invisível e muda de quinhentas mil vítimas de irracional e obstinado negacionismo, responsável pela falta da vacina que deixou de ser adquirida, e do oxigênio negligenciado, deverá ser o fiel da balança da Justiça. É impossível acreditar que o Poder Legislativo contribuirá para a impunidade dos causadores da horrenda tragédia humanitária.

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Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi ministro do Trabalho, presidente do Tribuna Superior do Trabalho (TST), autor de A Falsa República (site Os Divergentes, Brasília, DF, 21/6/2021)

 

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