A ideologia do Estado mínimo

Erich Vallim Vicente

 

Parece que o tempo atual não é para grandes reflexões. Mesmo que seja um debate extemporâneo, é preciso propor uma análise mais apurada do rumo para onde caminhamos. É urgente colocar à tona o que nós, enquanto sociedade, esperamos do poder público. O que se exige dessa estrutura que tanto se crítica e na mesma medida tanto se espera. Que tanto é necessária e da mesma forma tem a existência questionada.

Piracicaba acordou nesta semana com a notícia de que decisão do Tribunal de Justiça extinguiu os sete cargos de diretores da Câmara Municipal. De natureza técnica-político, essas funções são essenciais no funcionamento de uma estrutura tão complexa quanto o Legislativo, onde há constante diálogo entre corpo técnico e agentes políticos. Anseios públicos dependem de ação especializada para serem instrumentalizados.

Decisão judicial deve ser cumprida. E a Casa cumpriu. Mas, é claro, em tempos tão fechados para reflexões mais densas, sobra o cinismo daqueles que, por falta de compreensão (e também por maldade), comemoram a extinção de cargos públicos no tom da “mamata acabou”. Quem convive com as responsabilidades e a dimensão do poder público diariamente não comemora. Lamenta. E, claro, busca refletir sobre os rumos e onde estaremos se seguirmos a boiada passando.

A liturgia política do pós-Muro de Berlim trouxe a lógica do “fim da História” e com ela a ideia do Estado mínimo. O Brasil, enquanto um país de capitalismo periférico, abraçou essa causa (que nem é nossa, diga-se). Na economia global cada vez mais financeirizada, a figura do grande empresário forjado na industrialização promovida nos tempos de Getúlio Vargas foi trocada pelo acionista minoritário de capital especulativo.

Essa nova figura do “investidor nacional” pouco se importa com o Brasil, pouco se atenta às contradições de um País imenso e continental, diferente na geografia e desigual na sociedade. Ancorados em uma ideologia que, nos tempos atuais, não tem qualquer pudor em criticar um programa de transferência de renda e na outra ponta exigir isenção fiscal. Essa caricatura de patriota pretende o Estado reduzido à repressão.

O Estado mínimo se estabeleceu como poder hegemônico e ilude justamente aquele que mais precisa dos serviços públicos. Os incautos são enganados diariamente e diuturnamente. E são estes – pobres coitados! – os que comemoram a ideologia daqueles que os ignora.

Só para refletir um pouco mais, gostaria de trazer um exemplo que a cidade vive e o quanto é trágico. Nas últimas semanas, as reuniões ordinárias da Câmara são marcadas por reclamações sobre a falta de médicos em unidades de atendimento de saúde. A tragédia se expressa pelos motivos desta ausência de mão de obra: não é por falta da tal “vontade política” que não se tem mais médicos, mas pelo fato de que o cargo no SUS não ser tão rentável quanto qualquer outra atividade desta profissão na iniciativa privada. Abre-se concurso, mas simplesmente os profissionais não acham atrativo.

Alguém pode tentar dar a isso outro nome (como incompetência, por exemplo), mas é muito claro, isso se chama Estado mínimo.

Com a exoneração dos diretores, a Câmara perde na articulação entre o desejo político da Mesa Diretora, que por sua vez é captado nos anseios da população, e a capacidade de transformar estas demandas em ações efetivas. Os vereadores perdem profissionais qualificados em suas áreas de atuação para contribuir na dinâmica do mandato parlamentar. Os servidores ficam órfãos de interlocutores. Ficou estabelecido um abismo entre o ambiente político (legítimo, oxigênio democrático) e o âmbito técnico (onde estes anseios são instrumentalizados).

Ao preço de quê? Economia? Preciosismo legal? Independe de qual seja o motivo, explícito ou implícito, fica evidente a ideologia do Estado mínimo, de que a estrutura que constitui a própria Modernidade não serve mais, de que ela precisa ser desmantelada, mesmo que o enfraquecimento de uma casa legislativa represente também a perda de poder popular.

Mas isso não importa muito neste tempo avesso às grandes reflexões. Hoje o grito de felicidade do pobre coitado é de que a “mamata acabou!”.

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Erich Vallim Vicente, jornalista, é servidor concursado da Câmara Municipal de Piracicaba.

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