A diáspora madeirense: “se mais mundo houvera, lá chegara.”

Armando Alexandre dos Santos

 

Como vimos no último artigo, pela metade do século XVIII a produção de alimentos na Ilha da Madeira era insuficiente para a população, que crescia cada vez mais. Foi então que a Coroa portuguesa resolveu realizar a transferência maciça de madeirenses (como também de açorianos) para o sul do Brasil.

Vieram de Portugal, nessa ocasião, os famosos “casais” que povoaram a ilha de Santa Catarina e a região do Porto dos Casais (atual Porto Alegre).Com isso, não somente se aliviava o problema populacional das ilhas, mas também se garantia a ocupação do sul do Brasil, disputado à Espanha. Era mais um serviço que a Madeira prestava ao império luso e ao Brasil.

Note-se um pormenor muito importante: essa transferência dos casais teve início em 1747, precisamente na fase de maior esplendor das Minas. Era pelas Minas Gerais que os imigrantes portugueses sentiam maior atração, pois lá é que o enriquecimento podia ser mais rápido. Mas foi para o sul, para o que era então a parte mais dura da tarefa que foram os madeirenses, como também os seus irmãos, os não menos heroicos açorianos.

Um outro aspecto que deve ser lembrado, ainda na linha da dedicação do Arquipélago da Madeira a seus “irmãos menores”, e especialmente ao Brasil, é a participação intensíssima de madeirenses para a defesa do Império luso contra seus inimigos. Aqui no Brasil foi enorme a participação deles nas lutas contra franceses, no Rio e no Maranhão, e contra holandeses, na Bahia e em Pernambuco. Entre muitos outros, basta lembrar os nomes do João Fernandes Vieira, nascido na Madeira, e André Vidal de Negreiros, cuja mãe era natural de Porto Santo.

Houve vários madeirenses que, na fase pior da luta contra os holandeses, quando parecia definitivamente implantada a dominação holandesa em Pernambuco (a ponto de o Padre Antônio Vieiraconsiderar fato consumado e irreversível a existência de um Brasil holandês), armaram homens, fretaram navios e vieram por conta própria fazer guerra aos invasores.No Maranhão, um madeirense encabeçou a luta contra os franceses e os expulsou definitivamente. Assumiu o governo da capitania por aclamação popular e entregou-a depois às autoridades mandadas pelo Rei. Com isso, ficou arruinado economicamente, mas cumpriu o que julgava ser o seu dever.

Ao longo dos séculos XIX e XX, ainda prosseguiu a Diáspora. Para o Brasil, e depois para a Austrália, para a África do Sul, para o Canadá, para os Estados Unidos, a Madeira foi exportando o que tinha de melhor, ou seja, precisamente seus filhos mais capazes, com mais espírito empreendedor e iniciativa.

E por toda parte se foi fixando o emigrante madeirense, levando consigo o drama e a tragédia que representa, para todo ser humano cônscio de suas origens e de suas tradições – e o madeirense é bem assim – o romper violentamente com o torrão natal, sem nunca esquecer dele e levando sempre na alma a nostalgia do lar paterno, da aldeia nativa.

Maria Lamas registra em “O Arquipélago da Madeira, maravilha atlântica” numerosos casos de emigrantes que viajavam à procura de melhores condições de vida, deixando na Madeira esposa e filhos, na esperança de mais tarde poder regressar ou, talvez, chamá-los. Frequentemente acontecia (sobretudo no passado, quando as comunicações eram mais difíceis) que a família nunca mais tinha notícias. Muitos, aliás, dos que partiam eram analfabetos e nem lhes ocorria escrever para suas esposas, também analfabetas.Havia casos de rapazes que casavam e partiam para o estrangeiro logo na semana seguinte ao casamento. A esposa esperava, paciente e fielmente, o retorno do marido, vestida de preto, como se fosse viúva, até que, 30, 40 ou 50 anos depois, se convencia de que era realmente viúva. A “viuvinha”, jovem vestida de preto, acabou se tornando figura típica no folclore madeirense. São os dramas da emigração…

Curiosamente, os emigrantes madeirenses, onde quer que estejam, na hora de casar tendem a procurar moças madeirenses, ou de origem madeirense. Essa tendência é muito antiga. Os jornais da Madeira frequentemente publicam, ainda hoje, anúncios de madeirenses bem sucedidos na vida que, nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, ou em qualquer outra parte, desejam casar e pedem, por anúncios, que se apresentem candidatas.

Foi muito grande a participação da Madeira no Brasil, e especificamente em São Paulo, na constituição populacional. Numerosas famílias brasileiras têm origem mais remota ou mais próxima, na Madeira. Pode-se com segurança afirmar que não há família tradicional paulista, mineira ou nordestina (para falar só nestas) que não tenha sangue madeirense nas veias.

Muito resumidamente, foi assim que se formou a alma madeirense.O caráter e a têmpera do madeirense se forjaram na luta, no enfrentamento dos obstáculos da natureza, das circunstâncias desfavoráveis da economia.

Essa a raiz das grandes qualidades do madeirense: coragem, gosto pela aventura, espírito empreendedor, amor ao trabalho, à família e ao torrão natal, lealdade, espírito independente e até desafiador, sem embargo de ser polido e delicado. Como todos os viajantes da Madeira assinalaram, o madeirense, mesmo quando rústico, é extremamente cuidadoso em tratar bem os outros.

Um viajante inglês de princípios do século XIX notou que os madeirenses tiravam o chapéu para qualquer senhora com quem cruzavam na rua, mesmo que não a conhecessem. E não tiravam o chapéu para as estrangeiras. Perguntou o porquê disso e ficou sabendo que os madeirenses gostariam de tirar os chapéus também para as estrangeiras, mas como haviam notado que os estrangeiros eram muito pouco educados e não tiravam o chapéu para as senhoras portuguesas a quem não haviam sido apresentados, os madeirenses haviam resolvido lhes pagar na mesma moeda.

Realmente, o espírito madeirense é delicado e facilmente tende para o lirismo. A poesia popular madeirense é rica e sugestiva.

Além de delicado, o madeirense é refinado. Até pessoas muito simples, por vezes analfabetas, possuem um senso artístico notável e um bom gosto que encanta os estrangeiros que visitam a Madeira. Basta lembrar a tradicional arte dos bordados e os encantadores jardins da Ilha, cobertos de flores maravilhosas.

Curiosamente, em meio a tanta luta e a tanta tragédia, o madeirense não é triste. Ele é alegre, gosta de cantar, de dançar. Seu folclore é riquíssimo. Essa é a alma madeirense. Essa a alma que devemos homenagear, por tudo quanto a Madeira, nossa irmã mais velha, fez pelo Brasil e fez por São Paulo.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba

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