Disposições contrárias

Camilo Irineu Quartarollo

 

Depois da Lei Áurea, veio o projeto de branqueamento. Os imigrantes convidados vieram “fazer a América”, braços para a lavoura. Esse era o projeto de pátria. Queriam mudar o quadro da sala, levar a foto verdadeira ao porão, entretanto a arrumadeira trouxe o quadro novamente à sala de visitas e por mim, mero escravo das letras e pedindo licença aos afrodescendentes, faço o mesmo.

É costumeiro o gosto de se cantar enquanto trabalha, de participar de danças, batuques, conversas, no som que faz retumbar o repertório vivo como a maravilhosa Clementina de Jesus. O Brasil fala e canta na voz dos afrodescendentes, “amacia a língua” num português que só tem no Brasil. Em outros países lusófonos não se tem a mesma maciez oral, mas um acento fortemente lusitano, no Brasil não. Prova que a cultura afrodescendente é mais forte e genuinamente brasileira que se imagina, a meu ver.

Entretanto, três décadas depois da Lei Áurea, em 1919, Pixinguinha compôs um choro a Arthur Friedenreich pela vitória contra o Uruguai, no Rio de Janeiro. É o clássico Um a Zero. Porém, em 1921, para disputar o sul americano na Argentina não foram convocados jogadores afrodescendentes, como o filho da negra Mathilde, Arthur Friedenreich. Tal corte de convocação feita por orientação do presidente da república Epitácio Pessoa, conforme o jornal Correio da Manhã. Outros jornais, como O país, também denunciaram e Lima Barreto, autor do livro O mulato, acusou em sua crônica o ocorrido.

Nem todos os procedimentos costumeiros do escravismo foram abolidos e preconceitos não são revogados por decreto. A Capoeira foi proibida até 1937. A prisão por vadiagem, de 1941 e, oficialmente até 2012. Na prática antiga a lei limitava o uso do espaço público, o passeio nos bondes aos recém libertos. A prática religiosa do Candomblé e Umbanda foi proibida, a polícia invadia os terreiros. Os negros eram proibidos de cultuar seus deuses ou de um gostoso batuque à beira mar ou na praça. Inda hoje “as batidas para averiguação” são aviltantes se o suposto meliante é afrodescendente, bem como a invasão às comunidades e casas mais pobres, podendo serem criminalizados na rua sob quaisquer pretextos, como o reconhecimento de fichados pela rede social, roupas, brincos, tatuagem, estilo trançados de cabelo, etc. A lei áurea nos deu uma liberdade negada. Se negam a eles negam a nós o direito de tê-los entre nós.

Os ideólogos da abolição fizeram de tudo para acontecer a Lei de treze de maio, mas sabiam que haveria repercussões e contrariados. Talvez nossos abolicionistas não pensassem que os preconceitos fossem tão incrustrados no nosso tecido social e durassem tanto tempo! As disposições em contrário da tinta áurea prevaleceram sobre a palavra da princesa. Urdiram de um cientificismo insustentável e preconceitos em jornais de época para manter simbolicamente a escravidão em curso.

Oxalá possamos darmos as mãos brancas e negras, e não largar, por um Brasil de políticas públicas, inclusivo, pujante, ecumênico e feliz.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor independente, autor de A ressurreição de Abayomi dentre outros

 

 

 

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