Noção de Nação

Armando Alexandre dos Santos

 

Falei, nos meus últimos artigos, de como se constituiu no Brasil, no período que se seguiu à Independência, a noção compartilhada de que constituíamos uma nação com identidade própria, derivada da mãe-Pátria portuguesa, mas dela distinta.

A noção, ou o conceito de Nação é algo relativamente novo na História da Humanidade. Parece-nos tão óbvia e evidente a realidade de que os homens todos se inserem em sociedades políticas maiores às quais denominamos nações, que custa entender que no passado isso não era assim.

Na verdade, as identidades nacionais foram se forjando pouco a pouco. Na Europa, provavelmente a primeira foi a de Portugal. Por uma série de razões históricas e geopolíticas, Portugal formou-se unitariamente, premido, de um lado, por inimigos externos (os mouros, e os reinos de Leão e Castela) e de outro lado pelo mar misterioso e ameaçador. Em torno do rei constituiu-se uma forte noção de que todos constituíam um povo especial, inconfundível. A crise de 1383-1385, quando Portugal quase foi absorvido por Castela e, mais tarde, os 60 anos de domínio castelhano (1580-1640) somente corroboraram ainda mais esse sentimento de alteridade, de unicidade nacional.

A Inglaterra também, devido a seu isolamento geográfico, desenvolveu antes que outros países esse sentimento, sem embargo da procedência étnica muito variada de seu povo. Mas, ainda hoje, na Espanha o sentimento nacional é algo artificial, não compartilhado por muitos cidadãos espanhóis que se sentem mais bascos, aragoneses ou catalães do que espanhóis. Na Universidade de Alicante, onde fiz o doutorado, nenhuma língua era falada, por professores e alunos, que não fosse o “valencià”, dialeto do catalão próprio da região de Valência. Habituei-me a ler e traduzir o valencià, e a entendê-lo perfeitamente, embora não o fale. Eu falava em castelhano e me respondiam em valencià, com toda a naturalidade e sem nenhuma dificuldade de comunicação.

Na Itália, igualmente, muitos calabreses ou sicilianos se sentem pouco identificados com um Estado forte, centrado em Roma. Mesmo na França, o regionalismo é muito forte em várias partes do país. Habitantes da Bretanha e da região de Lyon, por exemplo, detestam Paris, em consequência dos morticínios e crimes cometidos quando da Revolução Francesa.

Osleitores que têm a generosidade de acompanhar meus artigos (e que frequentemente me abordam, nas ruas do Centro de Piracicaba, para comentarem uma ou outra coisa que por aqui vou escrevendo) sabem que sou monarquista, mas radicalmente contrário ao absolutismo régio. O absolutismo desvirtuou o regime monárquico, centralizando na pessoa do rei o Estado, a Nação e o Povo; enfraqueceu os organismos intermediários da sociedade, entre o governo e os indivíduos: enfraqueceu a instituição da família, as corporações de ofício, as autonomias municipais, universitárias e associativas. Enfraqueceu, igualmente, a nobreza, afastando-a de sua missão primitiva de defesa e assistência ao povo e deslocando-a para a vida ociosa e dispendiosa das cortes, onde ficavam gravitando em torno da figura de um rei todo-poderoso.

Luís XIV, teoricamente, era um rei onipotente. Na realidade, era fraco, porque seu poder estava se dissociando das suas legítimas bases de sustentação.Luís XV foi ainda mais fraco que seu bisavô Luís XIV. E Luís XVI foi mais fraco ainda que seu avô Luís XV e perdeu a vida e a coroa.O absolutismo, insisto, foi um grande desvirtuamento do princípio monárquico. Num primeiro momento, o rei ficou todo-poderoso, mas isolado. Num segundo momento, foi fácil fazer voltar contra o rei o conjunto da sociedade.O rei, que personificara o seu povo, passou a ser representado como o opositor desse povo.Foi essa a obra da Revolução Francesa que, à figura do rei, opôs a figura da nação, uma entidade nova, constituída por todos, amorfa (note-se que o Estado é apenas uma representação teórica da nação, mas não se confunde com ela), de caráter um tanto gelatinoso e indefinido. Em termos filosóficos, eu diria algo imanente, algo que lembra um pouco o panteísmo.

Dessa Nação nova são elementos constitutivos os cidadãos (palavra sonora que designa os indivíduos). Mas esses cidadãos, embora teoricamente partícipes da soberania nacional, são na realidade minúsculos grãos de areia, isolados, impotentes, que tiram seu poder exclusivamente do número.E esse número somente pode exprimir-se mediante eleições, as quais são manipuláveis por quem detém o poder da propaganda.Mudam-se, pois, os detentores do poder, mudam-se os títulos e cargos… e tudo continua na mesma. “Plus çachange, plusc´estlamêmechose”, dizem os franceses.

As revoluções de 1830 e 1848 foram muito importantes, no caso da França, para marcar bem essa ideia de Nação, entidade nova que fazia sua entrada no cenário mundial.O século XIX foi o grande século da constituição das nacionalidades, muitas delas construções artificiais que, como disse acima, nem sempre chegaram a seu termo.

Li há muitos anos o romance “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, numa edição raríssima, a primeira edição da obra, em nada menos que 10 volumes (na época, não se economizava papel, as letras eram grandes e as margens igualmente). Foi editada na Bélgica, em 1862, pois o autor estava exilado da França, devido a seus desentendimentos com Napoleão III.Hugo retrata bem, nessa obra, como se mitificou a nova entidade nacional, nas barricadas parisienses. Sua descrição da sociedade semissecreta“Os amigos do ABC” é muito ilustrativa a respeito.

Parece-me que foram vários os elementos simbólicos definidores da Nação revolucionária. A bandeira tricolor, a Marselhesa, as recordações mitificadas das guerras napoleônicas, o sentimento ufanista de pertencimento a uma nação que, culturalmente, ditava as normas para o mundo inteiro (quando a França espirrava, dizia-se, toda a Europa assova o nariz), tudo isso contribuiu para esse fortalecimento nacional.

Nos outros povos, o romantismo, a revalorização dos elementos originários, até mesmo medievais ou pré-históricos de cada um deles, a oposição a vizinhos perigosos, tudo isso também significou elementos simbólicos que marcaram a constituição das novas nações, no Velho como no Novo Mundo.

Apenas para concluir, gostaria de lembrar que, em Teoria Geral do Estado, existe uma definição muito clara do que é nação. Nação é um conjunto de pessoas que têm a noção de um passado comum e a esperança de um futuro também em comum.

A língua comum não é elemento sine quo non para a existência de uma nação. A Suíça tem três idiomas oficiais… O território também não é indispensável: judeus e ciganos nunca deixaram de ser nações, embora os primeiros tenham ficado 19 séculos sem território e os segundos nunca o tenham possuído. A existência de um governo, de um estado organizado, também não é essencial. O elemento étnico também é secundário. O importante é esse sentimento compartilhado de passado comum e de esperança de um futuro também comum.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba

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