José Renato Nalini
Li “O fim da trama”, história real da família Pascolato, que produziu D.Gabriela, a filha Costanza e suas netas Consuelo e Alessandra. Impressionante a saga enfrentada pela matriarca, no período precedente à II Guerra Mundial. Seu marido era ligado a Mussolini e exerceu cargos importantes. Com a derrota do eixo, foram perseguidos e a muito custo conseguiram chegar à Suíça e de lá vieram para o Brasil.
Gabriela foi uma heroína. O relato dessa epopeia lembra bastante o sacrifício de minha própria família. Imigrantes italianos que chegaram antes desse período, mas que enfrentaram situação análoga de fome e penúria.
Guardadas as proporções, aquela têmpera ajuda a explicar como foi que o Brasil conseguiu algum êxito na economia, principalmente no setor agrário. A imigração italiana trouxe não só braços, mas, o que é muito mais importante, brio. Algo que nem sempre se mostrou abundante em nosso país.
As italianas eram extraordinárias. O relato de Gabriela a confeccionar a roupa de seus filhos com tecido de cortina, o aproveitamento de qualquer minúsculo retalho, a economia doméstica tão peculiar a quem experimentou a fome, faz com que se reconheça o valor dessas heroínas. Minha “nona” fazia em sua cozinha desde o pão, até o macarrão, torrava e moía o café plantado no quintal, a linguiça elaborada com o suíno ali criado e alimentado com a produção da própria horta. Cosia as roupas dos filhos, mantinha a limpeza em níveis insólitos, ajudava o marido no cultivo da verdadeira autarquia que era um lar italiano alicerçado na fé inabalável. Sem deixar de comungar diariamente, pois a família sempre foi considerada um dos “pilares de São Bento”.
Os imigrantes aqui chegaram com a roupa do corpo, depois da quarentena em São Paulo, hoje o Museu do Imigrante. Antes disso, passaram ao menos quarenta e cinco dias num navio, em condições análogas à do gado. Aliás, piores. Algumas espécies do gado vacum recebiam melhor trato. Vinham para a reprodução. Os italianos vinham para substituir os cativos.
Durante a viagem, muitos morriam. Promiscuidade favorecia doenças entre os desnutridos. Como não havia câmeras de refrigeração, seus corpos eram lançados ao mar. O que chocava os peninsulares, de crença católica muito firme, ciosos de seus compromissos em relação aos mortos.
Aqui eram arremessados à própria sorte. Recebiam – quando privilegiados – um pedaço de terra virgem. Abriam espaço para a construção de sua casa. Construída com o suor de seu rosto. Faziam os alicerces, os tijolos, o vigamento para o telhado, portas e janelas. E conseguiam dar vida digna à sua descendência. Atentos ao Evangelho, cumpriam o mandamento do “crescei e multiplicai-vos”.
Enquanto isso, a tradicional família brasileira e seus patriarcas fazendeiros não se preparavam para a grande crise que só veio em 1929. Nas décadas anteriores, os italianos conseguiram poupar e, com o crash da Bolsa adquirir fazendas e substituir, ao menos financeiramente, a elite da terra.
Ainda assim, eram hostilizados pelos nacionais. Imigrante sempre foi encarado de soslaio. Quantos “oriundi” não ouviram os brasileiros recitarem “italiano carcamano, calcanhar de frigideira, quem foi que lhe deu o direito, de se casar com brasileira?”. Entretanto, eles salvaram muitas famílias tradicionais, os “paulistas de quatrocentos anos”, de perecerem à míngua. Pois no Brasil, não era falacioso observar que pai rico gerava filho nobre e neto pobre.
A História dos Pascolato foge à regra, porque Gabriela se valeu de seu bom gosto, de sua amizade com Salvatore Ferragamo para fundar a Santa Constância, uma têxtil refinada, que fez de Costanza a nobre “Papisa da Moda” brasileira. Vale a pena ler o livro. É instigante e enseja muita reflexão.
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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo