Como apresentar o romantismo do século XIX aos alunos de nosso tempo

Armando Alexandre dos Santos

 

O estudo da História somente apresenta interesse na medida em que o período estudado se assemelha e na medida em que ele se diferencia do presente. Essa é uma verdade básica que qualquer professor de História conhece perfeitamente. O referencial é sempre o presente. Estudar um período histórico tão diferente do atual, que não contenha nenhum elemento de semelhança, não desperta nenhum interesse para os alunos; e estudar um período histórico que fosse exatamente igual ao presente igualmente seria desinteressante. O interesse vem justamente desse jogo de semelhança e diferença, de sombra e luz, de claro e obscuro. É nesse ponto que o bom professor de História deve focar se quiser atrair a atenção e o interesse de seus alunos.

O mesmo vale para um docente de Literatura que deseje fazer seus jovens alunos se interessarem pela Literatura enquanto arte. Como fazê-los compreender e degustar um texto literário em prosa ou em verso? Como ajudá-los a desenvolver um senso estético próprio, que os enriqueça culturalmente e os acompanhe pela vida inteira?

Tomemos muito ao acaso, como exemplo, o caso concreto da primeira geração dos autores românticos brasileiros. Como apresentá-los aos alunos de nosso tempo? Que objetivos tinham? Que metas próxima sou remotas os atraíam? De que recursos linguísticos, estilísticos e léxicos dispunham? Como os utilizavam?

Tudo isso representa um desafio para os alunos, sem dúvida, pois estarão diante de problemas novos, dos quais nunca cogitaram. Mas também representam um desafio para o professor ou professora, que se vê em palpos de aranha para dar conta de sua missão docente.

O modo de se sair da dificuldade é aplicar o mesmo método que aplicam os professores de História. Deve mostrar aos alunos o que o período estudado tinha de semelhante e de diferente com a realidade atual de seus alunos. Deve fazer com que eles compreendam o problema concreto que se apresentava diante dos literatos do período estudado, fazendo com que compreendam os recursos de que dispunham na época, e somente então, depois de bem compreendidas essas duas noções, propor um exercício de análise textual da obra literária. Ao chegar a essa fase de análise, a todo momento deverá saber relacionar com o presente, de modo a tornar o tema atual e interessante aos alunos, instigando-os a descobrirem por si mesmos novas semelhanças e/ou dissemelhanças com o presente. Deverá propor, jeitosamente, que transponham o problema para nossos dias e procurem por si mesmos, com a linguagem de hoje e os recursos atualmente disponíveis, realizar tarefa semelhante.

Desde logo, é indispensável proceder a uma contextualização histórica, sem a qual não se terá o fundo de quadro indispensável para o tema ser compreendido e assimilado pelos alunos. É muito difícil, para nós, entendermos agora o grandíssimo problema que se apresentava à maneira de gigantesca Esfinge com um “decifra-me ou devoro-te”, diante da primeira geração de românticos brasileiros.

O Brasil mal acabara de se separar politicamente de Portugal. Os hábitos mentais dos brasileiros ainda permaneciam umbilicalmente ligados à Mãe-Pátria. Ainda se sentiammeio portugueses. Já sabiam que não mais o eram, mas essa noção era mais teórica do que real, mais especulativa do que vivencial. O que era propriamente um brasileiro? No que ele se diferenciava de um português?Na verdade, o Brasil vivia uma imensa crise de identidade. Vivia um problema existencial. Em outras palavras, o Brasil não sabia exatamente o que era, o que queria, para onde ia e que fim colimava. Tudo isso eram névoas que o Brasil vislumbrava vagamente, mas não via com clareza.

Hoje, quando numa Copa do Mundo, ou numa abertura de Olimpíadas, ouvimos o Hino Nacional, todos nós, brasileiros, estremecemos e nos sentimos irmanados, muito acima das divisões políticas, econômicas ou ideológicas que nos separam. Todos nos sentimos, acima de tudo, brasileiros. Mas, naquele tempo, as coisas ainda eram muito confusas, não estavam tão claras.

O Brasil, na verdade, tornou-se independente em 1815, quando foi elevado por D. João VI à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. Em 1822, o Brasil separou-se de Portugal, mas já era independente, do ponto de vista político e formal, antes disso.

Em 1822, consumou-se a separação. Mas permaneciam muito vagos os limites psicológicos e psico-sociológicos entre Portugal e Brasil. Era indispensável todo um trabalho de conscientização da nova nacionalidade, uma ampla tomada de consciência da alteridade entre a Mãe-Pátria lusa e o Brasil. Algo análogo aconteceu com as novas nações hispano-americanas. Também elas passavam pelo mesmo processo e sentiam a mesma necessidade. Também elas viviam, a seu modo, a mesma crise identitária.

Curiosamente, também na Europa velhas nações passavam por processo parecido. A Europa das nações, tal como a conhecemos nós, era uma realidade relativamente nova. Portugal, França e Inglaterra eram nações mais antigas, constituídas havia mais tempo. Mas a Espanha ainda era relativamente nova. Ainda hoje, em pleno século XXI, a união espanhola tem algo de artificial e nem a Catalunha nem os Bascos a reconhecem como algo indiscutível. A Alemanha e a Itália, somente bem mais tarde, em 1870, se unificariam. A Bélgica era outra nação que ainda não se encontrava formada.Foi nesse contexto que surgiu o romantismo, escola literária nova que valorizava, de modo idealizado, as origens históricas dos vários povos.

O romantismo europeu revalorizou a Idade Média dos respectivos países; em Portugal,Alexandre Herculano escreveu “Eurico, o Presbítero”, “O Monge de Cister”, “O Bobo” e “Lendas e Narrativas”, valorizando do Medievo português; na França, Victor Hugo escreveu “Nossa Senhora de Paris”, sobre a Catedral medieval de NotreDame; na Grã Bretanha, Walter Scott escreveu “Ivanhoé” e muitos outros livros,sobre temática medieval. Na música, especialmente nas óperas, temas medievais encantavam o público romântico do século XIX, todo ele voltado para o nacionalismo e a valorização cultural e histórica dos respectivos países. O romantismo foi, na Europa, medievalizante.

No Brasil e na América Espanhola, não tivemos Idade Média, pois já fomos descobertos nos Tempos Modernos. Por isso, ocorreu entre nós a tendência de revalorizar miticamente a figura do indígena. No Brasil, Gonçalves Dias e José de Alencar, entre muitos outros, o fizeram. No Peru, no México, no Chile e em outras nações hispano-americanas igualmente se mitificou o índio, como sendo uma espécie de patriarca, ancestral comum de toda a nação.

Essa é a explicação mais profunda do romantismo brasileiro, sobretudo na sua primeira geração, aquela que mais exaltou os valores pátrios idealizados e mais construiu a figura ideal do indígena.Analogamente, no campo historiográfico, tivemos a atuação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que foi fundado em 1838 com a missão precípua de escreve a História do Brasil, uma história independente da portuguesa, que convencesse os brasileiros de sua alteridade e de sua especificidade.

Esse é o quadro histórico dentro do qual devemos ler e entender a literatura romântica da nossa primeira fase.Esse quadro é preciso explicar aos alunos com toda a clareza. Só depois de bem entendido, poderemos passar à análise das obras literárias do período.

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

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