Salmo 22: “O Senhor é o meu pastor”

 

Armando Alexandre dos Santos

 

Continuemos o comentário do Salmo 22. Ainda recopilando comentários antigos e acrescentando os seus próprios, São Roberto Belarmino aponta como Davi, que possuía um perfeito conhecimento do ofício de pastor que exercera quando jovem, consegue referir em poucas palavras as oito necessidades básicas que têm as ovelhas e que compete ao pastor zeloso suprir: 1) receberem alimentação adequada e suficiente; 2) terem acesso a águas puras; 3) serem reconduzidas quando se extraviam; 4) serem conduzidas por caminhos cômodos; 5) serem defendidas de lobos e outros animais ferozes; 6) serem sustentadas quando exaustas; 7) serem aliviadas e reconfortadas quando se ferirem por espinhos ou pedras; 8) serem reconduzidas à noite para um abrigo seguro, a fim de descansarem e restaurarem as forças. Tudo isso está contido, com admirável espírito de síntese, nos versículos 2 a 4 do salmo.  (Supplementum…: t. I, 129).

Deus conduz o salmista “pelos caminhos da justiça”, isto é, pela via estreita dos seus mandamentos, para que viva corretamente (“per viam angustam praeceptorum suorum, ut juste viverem”), diz no mesmo local São Roberto Belarmino, acrescentando o modo como Deus o faz:

“Ele o faz removendo as ocasiões de pecado, diminuindo as forças do tentador, aumentando a caridade, tornando mais doce a prática da justiça, ilustrando, inflamando, atraindo, incutindo temor e de inúmeros outros modos. Se estivermos atentos a esses modos, em momento algum deixaremos de dar graças a tão doce Pastor, principalmente se não o fizermos alegando anteriores méritos nossos, mas por causa do seu nome, ou seja, para proclamar as riquezas de sua misericórdia e para louvar a glória da sua graça, como diz o Apóstolo São Paulo.” (Supplementum…: t. I, 130).

A alusão à vara e ao bastão que consolam, no versículo 4, tem duplo significado. O bastão é um instrumento de apoio para o pastor, sobretudo nas montanhas e caminhos difíceis, e de defesa no caso de aparecerem ameaças ao rebanho; já a vara do pastor é o instrumento adequado para dar oportuno corretivo a alguma ovelha rebelde que precise de umas varadas de advertência para voltar ao bom caminho; nesse caso, atua como paternal castigo – “ad castigationem paternam”, na interpretação de Santo Agostinho (354-430). Assim também Deus procede com as almas dos fiéis, quando as vê fatigadas e morosas no progresso espiritual: às vezes as sustenta, às vezes as corrige por meio de castigos; em ambos os casos, é sempre consoladora a ajuda divina e com ela deve alegrar-se a alma, porque se sente conduzida pelo Senhor. O bastão também simboliza a autoridade natural que tem o pastor sobre o seu rebanho e por isso, mais tarde, transmutou-se no báculo, símbolo da autoridade dos bispos e dos abades de mosteiros (Supplementum…: t. I, 130).

A referência ao óleo derramado – que corresponde a costume festivo entranhado na cultura hebraica, como se viu no caso de Santa Maria Madalena ter ungido os pés do Senhor na casa do fariseu (Mt 26) – parece alusão aos sacramentos da Crisma e da Unção dos Enfermos, mas alguns comentaristas antigos viram nela uma lembrança do óleo que o profeta Samuel derramou sobre o jovem Davi, ungindo-o como futuro rei de Israel (1Sm 16 1-13). Já a mesa e o cálice são geralmente interpretados como prefigurativos do Santíssimo Sacramento, por meio do qual os fiéis comem e bebem verdadeiramente o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo e nisso encontram a mais plena das consolações. (Cursus Completus…: t. XV, col. 154). O cálice que inebria não deve ser entendido em sentido mau de uma bebedeira destemperada que faz perder os sentidos, mas no sentido de saciar plenamente: é um cálice que inebria porque irriga e alegra, porque é cheio de consolação, generoso e transbordante de excelentíssimo licor (“calix inebrians, irrigans, laetificans, consolatione plenus, exuberans, redundans excellentissimo liquore” – idem).

Essa mesa esplendorosa, que Deus preparou para o Salmista e dispôs diante dele (“in conspectu meo”), foi também colocada “à vista dos que me perseguem” (“adversus eos qui tribulant me”). Há um paralelismo por oposição entre as expressões adverbiais “in conspectu meo” e “adversus eos”. A mesa foi colocada diante de Davi, mas de modo a ser vista pelos seus inimigos e perseguidores. O advérbio “adversus”, que traduzimos aproximativamente por “à vista de”, assume nesse contexto um sentido desafiador e combativo. Em outros termos, a mesa glorifica Davi de tal modo que sua visão humilha e esmaga os inimigos que lhe moviam perseguição.

É curioso registrar que São Roberto Belarmino julgou adequado exprimir esse matiz linguístico fazendo uso não do latim, mas de uma expressão corrente e quase popular da língua francesa: “gallice diceres, `à la barbe de mes ennemis´” (como se tu dissesses em francês, nas barbas dos meus inimigos). (Supplementum…: 128). É uma expressão coloquial equivalente a “esfregar na cara”, ou “esfregar no nariz”, do português atual.

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

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