Do lado de baixo do Equador

José Renato Nalini

 

Mudam-se os hábitos, os costumes, as crenças e as ilusões. Tudo é mudança no convívio humano, algo que Heráclito já intuíra: “ninguém consegue se banhar duas vezes nas águas do mesmo rio”. Somos outros, as águas são outras. Tudo em movimento contínuo, ainda que nem sempre se perceba.

Por isso a melhor explicação para o fenômeno jurídico é aquela formatada por Miguel Reale na teoria tridimensional do direito. Fato, valor e norma. Diante de um fato, a sociedade confere um valor num determinado momento histórico. A norma precisa corresponder ao valor que se emprestou ao fato.

À mutação do fato, ocorrerá mutação de valor e a norma não subsiste. Uma das instituições que melhor pode testemunhar isso é a família. Havia dois modelos predominantes de família durante boa parte da história registrada pelo ser humano em sua peregrinação pela Terra. Uma em que o parentesco era algo muito consistente, o mais antigo padrão já verificado. Surgiu com as sociedades agrárias, que produziram clãs unidos por recíprocos vínculos de parentesco. Predomina a linhagem patriarcal. Após o casamento, a mulher vai residir com a família do marido.

Era o que vigia na China Imperial, no Oriente Médio e, de certa forma, ainda predomina no Japão. É comum, nesse tipo, o casamento entre primos, tios com sobrinhas. A ideia é preservar a fortuna. Aqui no Brasil, durante muito tempo, havia a praxe de se solicitar ao Papa licença para que tios idosos se casassem com meninas suas sobrinhas.

Nesse padrão, ocorria o Levirato, ou seja, a obrigação da viúva sem filhos se casar com o irmão do marido falecido, mas também o Sororato: o viúvo tende a se casar com a irmã da mulher que morreu. Hipótese ainda hoje não incomum em vários nichos familiares.

Antigamente era também frequente a Poliginia, ou seja, um homem a possuir várias esposas. O que ainda ocorre em grande parte do globo e que em outras sociedades se disfarça com a manutenção de amantes.

As consequências do prevalecimento desse projeto familiar é a formação de alianças políticas alicerçadas em parentesco, o nepotismo, a preservação de uma cultura agrícola e provinciana, dificuldade na formação de uma cidadania consciente de seus deveres e direitos.

Já na Europa Ocidental desenvolveu-se uma tipologia diversa, em que o parentesco não exercia tanta influência. Por força da cristianização, por volta do ano quinhentos, estimulou-se a formação de famílias nucleares, resumidas aos pais e seus filhos. Fragilizaram-se os laços com os demais familiares.

Também era vedada a união entre primos até o sexto grau, assim como de parentes por afinidade, aqueles que não são de sangue, conforme a complexa linhagem ainda hoje prevista no Código Civil. Proibiu-se inclusive casamento de padrinhos e madrinhas com seus afilhados, relação considerada incestuosa. Em lugar da endogamia, prestigiou-se a exogamia, ou o casamento com pessoas não aparentadas.

Aboliu-se levirato e sororato e passou a vigorar o brocardo “quem casa quer casa”, sem a ampliação dos grupos familiares. O padrão monogâmico, em tese, abomina o concubinato. O resultado é o fim dos clãs, a formação de agregações espontâneas entre diversos grupos, intensificação da vida citadina e apreço pela participação política.

O que dizer hoje dessa origem familiar?

A chamada “família-tipo” do século XX – pai a trabalhar para obter o sustento, mãe com tarefas domésticas, um casal de filhos – praticamente é minoritária. Chegou a ser 70% até os anos cinquenta e no ano 2000 não ultrapassava 14%.

A partir daí, inúmeras conformações inesperadas surgiram. A chamada “produção independente”, com a filiação sem vínculos com o casamento. Muitas famílias mononucleares, com a mãe como chefe e responsável pelos filhos. Avós criando netos em virtude de filhos pré-mortos ou sem condições de zelar pelo produto de relações às vezes ocasionais.

Fertilização in vitro, fecundação artificial, parelhas homoafetivas, famílias poliafetivas e tantas configurações, que ao se cuidar da “família”, abre-se espaço para a multiplicidade de concretizações de um convívio propiciado por afeto. Na verdade, mais importante do que o sangue é o amor. Aquele sentimento que “move o sol e as demais estrelas”, é a argamassa que permite a continuidade da experiência humana sobre este sofrido planeta.

Toda sociedade que a vida real mostra tornar-se possível, desde que haja afeição, merece a proteção estatal. A aparente desordem social, a ruptura dos paradigmas, o inimaginável, cede espaço ao respeito que o ser humano merece, em quaisquer condições.

O Brasil é um instigante laboratório antropológico, para o desenvolvimento de experiências as mais interessantes e às vezes as mais esdrúxulas. Mas onde está o ser humano, aí está uma criatura que tem ínsita dignidade. É mister que ninguém se esqueça disso.

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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

 

 

 

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