No fundo, ainda somos caçadores coletores

Alessandra Cerri

 

Os caçadores coletores são os nossos primeiros ancestrais. A partir deles se deu a evolução da nossa espécie.  Nossos parentes mais longínquos viviam de maneira nômade, mudavam o tempo todo de lugar em busca de alimento ou fugindo de animais maiores que os tinham como presa. Viviam em pequenos grupos e tinham uma relação de profunda simbiose com a natureza.

O tempo foi passando e esses caçadores nômades descobrem o fogo, promovem a revolução agrícola que permitiu controlar plantações, domesticar animais e estabelecer moradia nas terras cultivadas. Passam a ter excedentes de produção e isso permite que surjam as lideranças, afinal surge a crença de que quem tem sobrando pode mandar e controlar quem tem de menos. Comunidades começam a ser formadas ao redor das terras cultivadas/administradas e a necessidade de controlar os habitantes dessas comunidades faz com que, segundo Harari em seu excelente livro Sapiens, surjam as três grandes ordens de globalização (imperial, religiosa e monetária) e, a partir disso talvez tenha começado grande parte de nossos problemas.

Essas ordens se juntam para aumentar o poder e garantir o controle das comunidades. Uma das maiores estratégias para se fortalecer no poder e aumentar posses era conquistando novas terras, novos povos e dominando as peculiaridades dessas novas conquistas a fim de que gerassem mais poder. Dentro desse contexto, o ser humano promove a revolução científica, pois já naquela época sabia-se que uma nação só prospera e evolui valorizando a ciência.

Pois bem, a partir dessa revolução o ser humano começa a entender que não sabe tudo, começa a questionar muitos conhecimentos e crenças que lhes eram impostas. Com Darwin tem início o entendimento de que existe a possibilidade de evolução e aperfeiçoamento das espécies. Uma corrida desenfreada para “evoluir” e prosperar é iniciada. Ocorre então a revolução industrial que alavanca os meios de produção, o controle sobre as máquinas, a importância do lucro e traz sérias consequências a vida humana. Algumas delas irrecuperáveis.

Continuando sua evolução, o ser humano – apoiado na nova crença de que conhecimento é poder – desenvolve a bomba atômica  e  tem a real certeza de que com ela se pode exterminar uma nação inteira. Envia o homem à lua e tem a nítida sensação de dominar o planeta. Com esses grandes eventos esse ser humano que respeitava a natureza, que temia seus predadores, que acreditava em destino passa a acreditar ser o senhor do universo, invencível e predador de todos os seus oponentes, passa a cultuar o dinheiro e sentir a necessidade de expor sua vida, de informar a todos os seus êxitos e alegrias compradas, uma vez que a frase de ordem atual é “informação é poder”.

Agora, algumas perguntas inevitáveis que devemos nos fazer: será que estamos emocionalmente preparados para sustentar essas crenças? Será que nosso cérebro evoluiu no ritmo dos eventos que o ser humano já vivenciou?

Muito provavelmente a resposta seja não. Nosso cérebro trino definido pelo neurocientista Paul McLean é resultado da evolução funcional pela qual nosso cérebro passou e por isso conserva essas triplas características: reptilíneo (relacionado a nossos instintos e sobrevivência), límbico (relacionado a nossas emoções) e finalmente o neocórtex ,que nos possibilita raciocinar e definir estratégias.

No entanto, segundo Leandro Telles, a intervenção que o ser humano fez no mundo ao seu redor foi muito rápida e agressiva. Nosso cérebro não evoluiu nessa mesma velocidade. De acordo com Telles, possuímos um cérebro antigo num mundo profundamente alterado pela própria humanidade, o que nos deixa muitas vezes vulneráveis e reféns de nossos instintos.

Claro que devemos ser gratos por esse processo evolutivo, afinal ele nos trouxe inúmeras melhorias. No entanto, algumas reflexões nos mostram que isso impactou e impacta até hoje nosso meio de vida e saúde.

Vivemos racionalizando nossos sentimentos, criando estratégias para vencer nossos predadores como nas antigas savanas, comemos demasiadamente como se a comida fosse nos faltar a qualquer momento, criamos vários pequenos grupos que adoram específicos “deuses” os famosos “ismos” (feminismo, machismo, comunismo, capitalismo, petismo, bolsonarismo, homossexualismo e assim vai…) para suprir a nossa necessidade de bandos que se identificam entre si e lutam para se defender de não sabemos direito o que. Consequentemente, os números de síndromes como ansiedade, depressão e estresse aumentam assustadoramente bem como os casos de obesidade e violência.

Em várias situações estamos sendo forçados a repensar nossa ancestralidade de caçadores coletores: o aumento dessas síndromes nos mostra a necessidade de viver para dentro; o aumento dos casos de obesidade nos mostra a necessidade de comermos menos e mais naturais;  o aumento do radicalismo nos mostra a necessidade de entendermos a beleza do politeísmo (a partir do momento que aceitamos a existência de vários “deuses” não ficamos extremistas a ponto de achar que o meu Deus ou o meu mito é o único aceitável, nos tornando mais tolerantes);  a existência de uma pandemia mundial nos força a diminuir o ritmo do consumismo e aumentar o tempo de permanência em nossas casas com nosso real bando, nos mostrando o que realmente é importante e necessário.

Não podemos reclamar da nossa evolução. Não podemos lamentar acontecimentos passados e nem negar nossa história, mas podemos refletir sobre nossas verdadeiras necessidades e condutas enquanto humanos. Não precisamos ser conectados 24 horas por dia para obter informação. Precisamos sim ter momentos de quietude para preservação da nossa paz; não precisamos nos expor constantemente em redes sociais, precisamos sim nos olhar e nos conhecer para aumentar nossos níveis de consciência; não precisamos lutar egoisticamente para demonstrar nosso poder e superioridade. Precisamos entender que ninguém caminha só e que o ser humano é um ser social que precisa ajudar e ser ajudado; não precisamos criar procedimentos para disfarçar o envelhecimento e nem uma ciência que desvende a morte para nos tornar amortais, antes disso, precisamos sim valorizar e viver a vida que temos agora.

Finalizo esse texto com uma frase de Harari que me inspirou a escrever esse texto e fazer algumas reflexões: “…se quer compreender a morte precisa compreender a vida”.  Namastê e até a próxima.

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Alessandra Cerri, sócia-diretora do Centro de Longevidade e Atualização de Piracicaba (Clap); mestre em Educação Física, pós-graduada em Neurociência e pós-graduada em Psicossomática

 

 

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