Adolpho Queiroz
Quem diria que a imagem de uma lata usada de Detefon, remédio para matar baratas, poderia se transformar num dos símbolos mais caros da cultura popular piracicabana? Pois é, vou explicar. Um sujeito nascido em Pitangueiras (região de Ribeirão Preto), criado em Jaboticabal, aportou sem querer em Piracicaba, estivou os olhos para Rio das Pedras e Saltinho, encontrou um grande amor e com ela, a sua Dalila, Osvaldo Moreira, aliás o palhaço Veneno, construiu uma história de amor, uma família e transformou-se num ícone da cultura local.
Começou a trabalhar num circo e certa vez, a falta do palhaço, que se demitiu no final de uma noite de espetáculos, fez o então faz tudo da companhia, Osvaldo Moreira, receber um convite do patrão para, no dia seguinte, estrear como palhaço para o público local. Sem conseguir dormir à noite, vislumbrou na lata do inseticida aquilo que seria sua marca, seu orgulho, sua profissão. “Detefon é muito feio…, mas Detefon é um Veneno”. E Veneno, para ele, combinava mais com o nome de um palhaço do que a marca original. E pegou. E, com ela, conviveu muitos anos.
Circo poderia ser uma forma até grotesca de determinação para o trabalho desenvolvido por ele e sua família. Teatro popular caberia melhor, em tempos de tantos avanços das artes, da comunicação, mas bem antes do boom das novas tecnologias digitais, eles conseguiam trabalhar com apenas uma folga semanal, às segundas feiras, com espetáculos e temas diversificados.
A redatora, editora e diretora dos espetáculos era a Dalila, companheira inseparável do clã dos Moreira. Ela escrevia os roteiros em cadernos com espiral e ensaiava apenas os três coadjuvantes. O resto ficava com Veneno, que ia inventando os cacos, contando piadas novas e velhas e entretendo a plateia. A capacidade de improvisação dele sempre foi notável e se espalhou pelas gerações que o sucederam, o filho “Poneis” e o neto, “Rico Veneno”. Já se fala na próxima geração, que tem substituto de três anos pintando… E fazendo palhaçadas.
O circo, que começou como um pavilhão, depois ganhou lona, carretas, trailers e outras modernidades, que faziam seus ocupantes serem conhecidos em Piracicaba e nas cidades da região. Viajar todos os anos para reverenciar a Senhora Santa em Aparecida do Norte era obrigação e lotava as velhas kombis da família.
Numa entrevista que fiz com ele, em 1974, para o jornal Aldeia, e que resgatei há poucos dias, ele me informava que os ingressos eram bem baratos “custavam quatro cruzeiros a cadeira e três cruzeiros a geral”. Não sei como os economistas calculariam isso nos dias atuais, com inflação, deflação e outros termos do “economês”.
Mas havia outra pegada para fazer um bom dinheiro naqueles dias. Vendiam-se porções de cuscuz, tortas doces, balas e até um gole de cachaça para dar mais alegria ao público. Que, sempre depois do terceiro sinal, quando as luzes se apagavam, entravam em transe nos bairros mais afastados da cidade de então, para gargalharem a valer com as estrepolias do Veneno e sua turma. Bairro Verde, Paulista, Pauliceia, Piracicamirim, Morumbi, Jaraguá, Santa Teresinha, era então a parte final de uma cidade chamada Piracicaba muito antes dos 400 mil habitantes que possui hoje.
As peças eram inspiradas em clássicos populares, como “A morte de Lampião”, em quatro atos, entre outras. E Veneno se divertia, ele mesmo dirigindo um velho fusca – que aparece durante entrevista que concedeu da TV Cultura na época, e ainda disponível no Youtube – convidando o distinto público para assistir, naquela noite, a presença no seu circo do Rei Roberto Carlos.
A casa lotou e Veneno ia ganhando tempo… ele está chegando… o rei vem vindo … olha ele aí, já ligou pra gente, está na esquina. E de repente, quem aparece por trás dos panos? Veneno, todo pintado de preto, lábios vermelhos e cantando uma melodia do Rei… a plateia foi ao delírio.
Bons tempos que não voltam mais. Mas a saudade da trupe do Veneno continua a encantar a cidade.
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Adolpho Queiroz, jornalista, escritor, secretário municipal de Cultura