A morte

Tarciso de Assis Jacintho

 

A morte é o maior evento da vida de um indivíduo. Paradoxalmente, nela se representa tudo o que se foi e muitas vezes a esperança do que se virá por ser.  No entanto é preciso entender que existem diferentes concepções sobre Deus, e por via de consequência, da morte e de suas implicações. Há crenças em que o luto é algo triste, mas também há outras em que a morte de alguém é comemorada como forma de celebrar o que a pessoa foi em vida.

Mas fato é que a morte é um tabu na maioria das culturas. Em nosso contexto, embora ela seja encarada sim como um momento triste, há ainda a esperança de uma passagem para um lugar melhor, de paz eterna, e não como o fim definitivo da existência. Por esse motivo alguns rituais não se limitam a esse momento triste e de despedida, mas de um momento de reflexão sobre nossa vida e das convicções de nossa esperança. Em outros contextos culturais a morte tem outros significados, estes percebidos nas formas de sua celebração.

A tribo dos ianomâmis na Amazônia venezuelana, tem um ritual que consiste da cremação do cadáver e divisão das cinzas dos ossos entre os parentes e aliados da tribo. As cinzas são misturadas em uma sopa que também leva bananas. Isso é feito para que as pessoas consigam absorver a energia vital do morto.

Na ilha de Madagascar, a cada sete anos, é feito o ritual fúnebre de Famadihana. A celebração é realizada para festejar a decomposição do corpo, para garantir que o espírito vá para um mundo melhor e consiga fazer essa travessia com tranquilidade. Para isso, eles retiram o cadáver do túmulo, o envolvem em um pano e dançam com ele. Na Península de lucatã, no México, em um ritual maia os cadáveres são desenterrados depois de três anos e seis meses. Retiram-se os ossos, que após lavados são cobertos com guardanapos cuidadosamente bordados. Depois, todos os anos, na véspera do Dia dos Mortos, esses ossos são colocados em ossários. Isso é feito como uma forma de demonstrar respeito e honrar a memória do falecido, para que ele não seja esquecido.

Tragicamente, muitos rituais milenares de luto e despedida dos mortos não podem ser realizados durante a pandemia. Atualmente, milhões de sobreviventes em todo o mundo estão enfrentando tal situação. No Brasil, onde esta semana atingimos a triste marca de 300 mil mortos por Covid-19, o Ministério da Saúde estabeleceu um protocolo de procedimentos funerários que, entre outras coisas, proíbe o velório tradicional.

“Normalmente, no Brasil há uma vigília por um dia com o caixão aberto”, explica a antropóloga Andréia Vicente, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. “No velório, é comum que os parentes e amigos se reúnam em volta do caixão e compartilhem o sofrimento pela perda: contam histórias, mas também conversam com o falecido, o tocam”, explica a especialista. Após 24 horas, um corpo deve ser enterrado no Brasil, a menos que haja razões forenses que se oponham a isso. O mais importante, ela ressalta, é que o rito ocorra. “Ver o cadáver, perceber que o ente querido não reage – nem às palavras nem ao toque –, tudo isso ajuda a realmente perceber a morte. E isso facilita muito o processo de luto.”

No entanto, esses ritos são atualmente proibidos no Brasil – especialmente se os mortos foram infectados com o coronavírus. No hospital, eles são colocados no caixão dentro de um saco plástico. Os parentes só veem o caixão fechado. Quando muito.

Andréia Vicente afirma que as diretrizes da administração dos cemitérios determinam se parentes podem chegar perto do caixão antes do sepultamento. “Alguns sobreviventes relatam coveiros muito atenciosos. Outros nem tiveram tempo para uma oração antes que as primeiras pás da terra caíssem no caixão. Uma mulher considerou isso uma degradação de seu falecido marido”, afirma a especialista, que realiza muitas entrevistas sobre o assunto para seus estudos.

A perda inesperada de um ente querido é mais comum para brasileiros do que europeus, mesmo sem pandemia. Cinquenta mil pessoas foram assassinadas a cada ano nos últimos 10 anos – ou seja, quase 240 homicídios por milhão de pessoas. Na União Europeia, eles são menos de 10. O número de mortes no trânsito no Brasil é quatro vezes maior que na UE em relação à população. E por causa do sistema de saúde muitas vezes precário, mais pessoas morrem de doenças curáveis.

Isso afeta em particular as camadas mais pobres da população, nas quais a Covid-19 também reivindica um número desproporcional de fatalidades. No entanto, a psicóloga Elaine Alves não acredita que isso crie certa rotina para lidar com a morte. “A morte é algo a que ninguém se acostuma. Cada morte e cada sofrimento são individuais – especialmente em se tratando de parentes próximos ou amigos”, diz. A antropóloga Andréia Vicente concorda. “A morte de outra pessoa é tão difícil de suportar, entre outras coisas, porque também nos lembra de nossa própria mortalidade.”

 

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Jesus chorou. Este versículo, o menor da Bíblia inglesa, carrega em si um simbolismo. Ele chorou diante da morte de um amigo que em ato contínuo ressuscitaria, como sinal de sua filiação divina. Chorou por misericórdia. Por sentir nossa miséria em seu coração. Este ano já experimentei três mortes. Uma inesperada, que nos surpreende em uma terça feira pela manhã. Outras duas, trabalhadas no coração e esperadas como o fim de um grande período de sofrimento. Estas mortes me lembraram da minha própria mortalidade, mas também produziram em mim empatia pelas tantas, diárias e contabilizadas, que neste momento começam a ter nomes e rostos, por estarem se aproximando de nós. Mas não chorei. Jesus chora ao ver a angústia daqueles que Ele ama. Senhor, tenha misericórdia de nós.

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Tarciso de Assis Jacintho, administrador, Coordenador Administrativo Financeiro na APFP ( Associação Presbiteriana de Filantropia de Piracicaba)

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