Deus e o Compasso

Gabriel Chaim

A Geometria e sua dimensão no sagrado é o tema do texto de hoje. Gostaria de introduzir ao leitor um dos conceitos fundamentais que inspiram esta coluna, a Filosofia Perene, e como a Geometria está relacionada a seus ensinamentos.

A palavra “Perene”, encontrada no nome desta coluna, está relacionada ao conceito de “eterno”, de algo que permanece e persiste ao longo das eras. Faz alusão à “Filosofia Perene”, também chamada de “Sabedoria Perene”, que é uma linha de pensamento que propõe que as bases da espiritualidade são frutos de uma verdade única, original. As diferentes manifestações de espiritualidade (as muitas religiões) mostram-se distintas à primeira vista, contudo, ao aprofundar-se em seus estudos iniciáticos (esotéricos) percebe-se que as ideias propostas são cada vez mais próximas e semelhantes entre si. Martin Lings, sufi e perenialista do século XX, propõe (em linguagem bastante geométrica) que as diferentes religiões podem ser comparadas a pontos ao redor de uma mesma circunferência, enquanto seus ensinamentos esotéricos são como raios do mesmo círculo que acessam seu centro (a Verdade Original). Percebe-se, portanto, que, conforme os ensinamentos iniciáticos avançam, a distância entre cada religião torna-se menor até todas culminarem no mesmo centro, a Origem.

Modelo da descrição de Martin Lings.
Modelo da descrição de Martin Lings.

A Geometria, em sua dimensão mais sofisticada, pode tornar-se um meio de se atingir a Origem.  Professor Keith Critchlow, geômetra e fundador da Escola de Artes Tradicionais onde estudo, repetia a frase atribuída a Sócrates: “A Geometria é a arte da verdade eterna”. Essa frase alude ao conceito de que o universo se manifesta por meios geométricos. Os arquétipos básicos da Geometria são universalmente identificados por todos os povos do mundo; em outras palavras: um quadrado é um quadrado aqui e em qualquer lugar do planeta. Para o professor, a prática da Geometria é semelhante à prática do “Karma Yoga” no Hinduísmo. O Hinduísmo é composto de três caminho iniciáticos: Jnana Yoga (o caminho do conhecimento), Bhakti Yoga (o caminho da devoção a Deus) e Karma Yoga (o caminho da ação, da prática) e é exatamente através da prática que os fundamentos da geometria se solidificam na mente do geômetra. Um desses fundamentos é que todas as composições se iniciam por um círculo. Portanto, nada se faz sem um compasso. Professor Critchlow exalta o compasso como o instrumento mais importante já feito e adiciona que o relacionamento do geômetra com sua ferramenta deve ser semelhante ao de Deus durante a Criação. Essa alegoria provém das tradições medievais que descrevem a figura do Criador como o “Arquiteto do Universo” que segura um compasso enquanto projeta o toda a existência.

Anônimo, “Deus, o Arquiteto do Universo” (1220-1230), Bíblia Moralisée, iluminação em pergaminho, 34,4 × 26 cm, Österreichische Nationalbibliothek, Viena, Áustria
Anônimo, “Deus, o Arquiteto do Universo” (1220-1230), Bíblia Moralisée, iluminação em pergaminho, 34,4 × 26 cm, Österreichische Nationalbibliothek, Viena, Áustria

É seguro afirmar que há uso da geometria em todas as tradições das Artes Sacras. Contudo, algumas se destacam: como a mais nova das religiões Abraâmicas, o Islã foi energético na retomada de um dos conceitos estabelecidos pelas leis de Moisés, o terceiro mandamento: “Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem esculpida, nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou embaixo na terra, ou mesmo nas águas que estão debaixo da terra (…)”. Essa ausência de imagens devocionais (que é tão abundante no Cristianismo) impeliu os muçulmanos a debruçarem em aspectos mais abstratos da presença divina. Titus Burckhardt, perenialista historiador da arte do século XX conta sobre um diálogo de dois artistas medievais: um europeu, influenciado pela arte figurativa e outro norte-africano, influenciado pela arte islâmica; o artista africano apresenta ao europeu um mural em braco e pede para sugerir uma composição, o europeu subitamente propõe a elaboração de lebres e gazelas para serem pintadas; o muçulmano questiona a proposta: “Mas lebres, gazelas e qualquer outro animal já podem ser encontradas na natureza, por que reproduzí-los então? Que tal desenharmos três rosetas geométricas, uma com onze segmentos, as outras duas com oito e as fazermos se juntar completando o espaço harmoniosamente, isso é arte”. A proposta do artista muçulmano denota uma perspectiva de beleza que não está baseada reprodução de elementos deste mundo, mas no entendimento da matriz que compõe a linguagem do universo, a Geometria.

Exemplo de padrões islâmicos nos azulejos do Palácio de Alhambra, Espanha.
Exemplo de padrões islâmicos nos azulejos do Palácio de Alhambra, Espanha.

Gabriel Chaim, pintor, Mestrado em Artes Visuais Islâmicas e Tradicionais na Prince’s School of Traditional Arts; [email protected]; instagram: @gabrielluizchaim

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