Um filósofo que não deve ser tomado a sério

Armando Alexandre dos Santos

 

Quando Rousseau já estava bem idoso, certo dia se aproximou dele um comerciante suíço e lhe declarou, embevecido, que o admirava muito, que havia lido toda a sua obra e tinha feito questão de educar todos os seus filhos de acordo com os princípios pedagógicos ensinados pelo grande mestre Jean-Jacques Rousseau no “Emílio”.

Rousseau, então, olhou o indivíduo bem nos olhos e lhe respondeu:- Pois se teve coragem de educar os seus próprios filhos de acordo com os princípios que eu ensinei naquele livro, só posso lhe dizer que não passa de um imenso animal (vous n’êtesqu’unegrossebête).

Li esse episódio há muitos anos, num livro de memórias extraordinariamente interessante, escrito pela Baronesa de Oberkirch, uma alemã que se mudou para a Rússia, como dama de companhia de uma princesa que foi casar com o grão-duque Paulo, filho e herdeiro da Czarina Catarina a Grande.O grão-duque e sua esposa fizeram, pouco antes da Revolução Francesa, uma longa viagem pela Europa e se demoraram muitos meses na França, em viagem não oficial, incógnitos, apresentando-se publicamente como “Conde e Condessa do Norte”, mas toda a gente sabia que na verdade eram os herdeiros do Império russo.

A baronesa de Oberkirch, que os acompanhou por toda parte, deixou um relato extremamente rico e bem documentado de tudo o que presenciou e analisou – ambientes, pessoas, realidade política e social. Foi precisamente nesse livro que tomei conhecimento do episódio acima, do qual se conclui que Rousseau é um filósofo importantíssimo… mas que não pode ser sempre tomado a sério!

Nascido em Genebra, na Suíça, em 1712, de uma família calvinista de origem francesa, nunca conheceu sua mãe e perdeu o pai aos 10 anos. Teve formação inconstante e conturbada, passando de um mestre excessivamente rigoroso para uma fase de liberdade prematura, imatura e descontrolada, com leituras caóticas e não bem digeridas que lhe proporcionaram uma cultura bastante questionável, suficiente para lhe permitir opinar a respeito de tudo sem precisar se aprofundar, realmente, em nada, e, sobretudo, sem se preocupar com as contradições flagrantes entre o que escrevia em ocasiões diferentes.

Moralmente, teve vida muito irregular. Semeou cinco filhos numa amante rica que o manteve durante anos, mas nunca se interessou por eles, mandando-os para um orfanato. Viveu ao léu, vagando errante, durante muito tempo, até fixar-se, nos últimos anos, num retiro cheio de amarga misantropia, curtindo suas frustrações e falecendo aos 66 anos.

Foi, sobretudo, um agente provocador, que se deliciava por suas opiniões emitidas de modo a chocar a sociedade decadente do Antigo Regime, seus costumes, seus modos de ser e pensar. Julgo que, no seu tempo, deve ter representado um papel análogo àquele que, na São Paulo de 1922, tiveram os participantes da famosa Semana de Arte Moderna.

Num século em que era idolatrada a razão humana como valor supremo, só podia ser chocante o “Discurso sobre as ciências e as artes” que o tornou famoso, aos 37 anos de idade, em 1750. A Academia de Dijon, na Borgonha, instituíra um concurso público de ensaios, para responder à seguinte pergunta: “O desenvolvimento das ciências e das artes favoreceu o aprimoramento dos costumes?”.O bom senso mais elementar mandava, claro, responder afirmativamente e dizer o porquê disso. Mas Rousseau, sempre querendo “épaterlabourgeoisie” (assustar a burguesia) pelo inesperado de suas posições, opinou pela negativa. Conseguiu seu objetivo: chamou a atenção dos julgadores, fascinou-os com seu estilo colorido e envolvente, ganhou o prêmio e ficou famoso…

Também em matéria pedagógica e política, chocava o bom senso estabelecido e, por esse meio, atraía as atenções e os aplausos irrefletidos dos amantes de novidades que queriam estar “na crista da onda”.

A educação, sempre, em todas as partes, foi concebida como um trabalho árduo, similar ao do agricultor que orienta o crescimento de uma planta. Há que preparar cuidadosamente seu terreno, adubá-la, estacá-la, podá-la, dirigir seu crescimento, impedir que se deforme, combater as ervas daninhas etc. etc. Essas tarefas todas não violentam a natureza da planta, mas, pelo contrário, libertam e protegem a planta de uma série de fatores negativos e permitem que ela cresça saudavelmente, de acordo com a própria natureza. Em outras palavras, a natureza humana era perfeita antes do pecado original. Corrompida pelos efeitos dele, ficou sujeita a uma série de condicionamentos que a predispõem à desordem, à feiura, ao mal. E a educação, a ascese, o esforço da vontade, devem ajudar a natureza humana a superar todos esses entraves, para que ela possa, na plenitude da sua liberdade, se realizar por inteiro.

Rousseau, entretanto, sem ousar negar diretamente o pecado original, na prática negou os seus efeitos. Para ele, o indivíduo é naturalmente bom, a sociedade é que o corrompe. Os homens, no seu conjunto, são piorados quando se reconhecem constituindo uma sociedade e, pior ainda, quando se organizam como estado.

Em matéria política e social, seu “Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade Entre Homens” e “O Contrato Social” tiveram grande importância, no contexto do Enciclopedismo, na preparação da Revolução Francesa.

Seus escritos, embora eivados de contradições pontuais, contribuíram poderosamente para o desenvolvimento de uma série de movimentos culturais e ideológicos dos últimos duzentos anos. O socialismo, a negação da propriedade privada, o liberalismo extremado, as teorias pedagógicas “construtivistas”, até mesmo certas concepções do moderno ecologismo – tudo isso, de uma forma ou de outra, remonta, em seus fundamentos, até Rousseau.

Daí ser ele um filósofo tão importante… se bem que, como disse no começo deste artigo, não deva ser sempre tomado muito a sério.

Recordo mais uma vez, a respeito, o que ouvi do saudoso poeta Paulo Bomfim, acerca da Semana de Arte Moderna de 1922: o grande drama da primeira geração de modernistas é que foi tomada sempre a sério, quando muitas vezes estava apenas fazendo blague, para impressionar e causar sensação.Quando um pintor modernista apresentava, num concurso de arte, uma tela com um único borrão informe de tinta no meio, ele não queria dizer que aquilo era arte nem que aquilo era belo… Ele só queria protestar contra os excessos de formalismo das escolas artísticas anteriores. O pior é que muita gente tomava a sério e via, naquilo, um critério estético novo, a ser admirado, seguido e imitadopapagaiescamente…

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

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