O rio Piracicaba e o salmo do rei Davi

Armando Alexandre dos Santos

 

Quando contemplo, da janela do meu apartamento, o belíssimo rio Piracicaba, recordo da também belíssima frase do Rei Davi:“Fluminisimpetuslaetificatcivitatem Dei”(Salmo 45, 5). Como são, infelizmente, cada vez menos numerosas as pessoas que ainda cultivam e entendem o idioma do velho Lácio, traduzo: “o ímpeto do rio (ou o rio caudaloso) alegra a cidade de Deus”.

Essa frase bíblica, que podemos aplicar perfeitamente ao nosso rio Piracicaba, além de seu sentido místico e simbólico, tem também um sentido material e prático. Para uma cidade, realmente, é benéfica e causadora de alegria a presença de um rio com águas abundantes. Para se entender o sentido dessa frase, há que inseri-la no contexto do citado salmo, mais especificamente dos seus primeiros seis versículos: “Salmo para o fim, dos filhos de Coré, para os mistérios. Deus é nosso refúgio e nossa força; nosso auxílio nas tribulações que nos cercavam de todas as partes. Por isso não temeremos ainda que a terra seja abalada, e sejam transladados os montes para o meio do mar. Bramaram e turbaram-se suas águas; estremeceram os montes pela sua fortaleza. Um rio caudaloso alegra a cidade de Deus; o Altíssimo santificou seu tabernáculo. Deus está no meio dela, não será comovida; Deus a ajudará desde o raiar do dia.”

O sentido místico e anagógico do salmo 45 foi explicado pelo jesuíta São Roberto Bellarmino (1542-1621), na sua “Explanatio in Psalmos”, que costuma ser editada como complemento à monumental obra “Commentaria in ScripturamSacram”, do exegeta Pe. Cornélio a Lapide (1567-1637), também da Companhia de Jesus.

São Roberto Bellarmino começa por dizer que alguns autores mais recentes entendiam o salmo 45 como sendo um cântico de ação de graças do rei Davi, pela vitória que obteve com o auxílio de Deus sobre seus inimigos, mas esse não era o entendimento dos antigos Padres da Igreja, como Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho, São Basílio, São João Crisóstomo, Teodoreto e Eutímio, que com grande consenso ensinaram que esse salmo deve ser entendido como tratando da libertação da Igreja Católica de seus perseguidores infiéis. O título do salmo, segundo esses autores antigos e o próprio São Roberto Belarmino, confirma essa interpretação: se se destina “para o fim” e “para os mistérios”, não podia referir-se a fatos passados, mas somente a futuros e ainda desconhecidos.

A referência aos montes que estremecem e são transladados para o meio do mar agitado, seguida da alusão ao rio caudaloso que alegra a Cidade de Deus, tem uma explicação muito bonita, em sentido figurado, que é dada por São Basílio e São João Crisóstomo, e endossada por São Roberto Bellarmino:

“Podem todas essas coisas ser entendidas de modo figurado, entendendo-se por terra os homens terrenos; por montes, não somente os homens terrenos, mas aqueles que têm poder e são soberbos, como o eram os grandes reis inimigos da Igreja; por mar, se entende a amargura da tribulação e dos sofrimentos que nos últimos tempos envolverão a todos os ímpios. É desse modo que a terra será abalada quando os ímpios que amam a terra se abalarem, turbados com temor horrível, como diz o Livro da Sabedoria, 5, 2. E os montes serão transladados para o meio do mar, quando os antigos grandes reis que perseguiam a Igreja forem mergulhados no mais profundo abismo, e então bramarão e se turbarão as águas dos mares, quando a futura última tribulação de modo horrível turbar os ímpios, e os seus reis, ante a força de Deus, porque então se manifestará quão grande é o poder da cólera de Deus contra os pecadores. Mostra [o salmo] a seguir porque o povo de Deus não temerá quando se turbar a terra e os montes forem transferidos no meio do mar; e diz a razão disso, porque, em lugar da abundância de amargura que turbará os ímpios, será dada à Igreja uma abundância de felicidade, que a encherá de regozijo, e em lugar da instabilidade dos montes, que se verão lançados no meio do mar, à Igreja será dada uma perpétua estabilidade, porque Deus estará no meio dela. E diz que o ímpeto do rio alegrará a cidade de Deus, ou seja, não temerá  o povo de Deus quando se turbar a terra, porque não invadirão a Igreja as ondas do mar amargo; mas, pelo contrário,  as águas doces e claras do rio com grande ímpeto, e evidentemente em grande quantidade, com abundância de felicidade a alegrarão. (…) E conclui mostrando de onde e quando se darão essas coisas, ao dizer que Deus a ajudará desde o raiar do dia, ou seja, no início do dia da eterna felicidade. A Escritura, com efeito, compara o tempo da infidelidade às trevas da noite, o tempo da fé à aurora, e a visão de Deus à claridade do dia (Rom. 13, 12)”. (RobertiBellarminiPolitiani…Explanatio in Psalmos.Veneza: Thomas Bettinelli, 1747, pp. 166-167).

Desde os tempos mais recuados da História, as povoações e cidades, na sua imensa maioria, quase sempre se formaram à beira de algum curso de água. Mesmo as cidades litorâneas, normalmente se situam junto à foz de algum rio, que lhes fornece água doce. Raríssimas são as cidades não banhadas por algum rio em função do qual vivam.

O rio Piracicaba representa, para nossa cidade, uma verdadeira bênção. Seria impensável a cidade de Piracicaba sem seu rio. Ainda que, por hipótese, fosse possível abastecer suficientemente a cidade com gigantescos poços artesianos ou com água trazida de outras partes, Piracicaba não teria razão de existir sem o seu rio.

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

 

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