Doação providencial que salvou o Instituto

Armando Alexandre dos Santos

 

No último artigo, falei da distinção e da classe que a saudosa Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias sempre mantinha, em todos os aspectos de sua atuação como presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Recordo, hoje, um fato concreto de demonstra essa distinção e essa fina educação. Com ele, concluo a série de artigos in memoriam da ilustre falecida.

Em fins de 2003, mais precisamente no dia 4/10/2003, foi realizada no Instituto uma lindíssima sessão de homenagem ao Poeta Paulo Bomfim, que poucos dias antes comemorara seu 76º. aniversário. O auditório estava lotado. Houve vários discursos, apresentação musical, declamação de poesias etc. Se não me falha a memória até declamei, na ocasião, uma ou duas poesias de Paulo. Quando encerrou a sessão, era grande o número de pessoas que se aglomerava junto à porta do auditório, algumas para entrar nos elevadores, outras tentando descer pelas escadas.

Eu estava ali, junto com muitas outras pessoas, esperando minha vez de passar quando, de repente, me vi ao lado do Dr. Antônio Ermírio de Morais, que fora colega, no Ginásio Rio Branco, de Paulo Bomfim e tinha comparecido à sessão para homenagear o velho amigo. Ele estava como sempre aparecia, com um terno de cor marrom clara, bastante usado, com a gravata indefectivelmente torta… como costumava usar. Despretensão e simplicidade totais.

Eu somente o conhecia de vista. Nunca tinha falado com ele, mas com naturalidade trocamos algumas frases sobre a beleza da sessão. Dr. Ermírio estava visivelmente impressionado e comentou que tinha gostado muito de tudo, e que o Instituto era uma entidade muito importante para a preservação da cultura de S. Paulo.  Bateu-me, então, uma inspiração… Disse a ele que a sobrevivência do Instituto estava ameaçada, por uma dívida muito grande junto à Previdência Social, deixada pela administração anterior. Já havia sido parcelada, mas estava sendo muito grande a dificuldade em honrar os pagamentos. E perguntei se ele não poderia fazer alguma coisa pelo Instituto. Fiz isso num repente, com “cara e coragem”, embora ele não me conhecesse e nem soubesse quem eu era… Não sei o que ele terá pensado a meu respeito, mas, muito decidido, respondeu: “Dê-me seu cartão e verei o que posso fazer”. Entreguei o cartão e nos despedimos. Confesso que não tinha muita esperança de que aquele pedido extemporâneo e quase atrevido chegasse a algum sucesso.

Não sei se ele chegou a falar com Paulo Bomfim a respeito, para pedir informações a meu respeito. Só sei que, duas ou três semanas depois, numa manhã, bem cedo, tocou meu telefone. Atendi. Era o próprio Dr. Ermírio. Disse que estava querendo ajudar duas instituições veneráveis de S. Paulo, que estavam com a sobrevivência ameaçada: o nosso Instituto e o Colégio de São Bento. Estava disposto a ajudar as duas, mas só o faria se tivesse certeza de que o dinheiro dele seria bem aplicado. E propôs mandar o auditor dele visitar o Instituto e examinar nossa contabilidade. Se o auditor aprovasse, ele ajudaria. Se o auditor notasse alguma coisa errada, daria parecer contrário e, nesse caso, ele nada poderia fazer.

Respondi ao Dr. Ermírio que eu era somente Diretor de Publicações do Instituto e nada entendia de contabilidade, mas falaria com a Presidente Nelly Candeias.

Realmente, telefonei de imediato à Dra. Nelly e logo agendamos a visita do auditor, que alguns dias compareceu à sede do Instituto e fez uma severíssima análise dos lançamentos contábeis e dos balanços. Quem o atendeu pessoalmente foi Dra. Nelly, estando eu também presente.

Quando soubemos que iria um auditor do Grupo Votorantim, logo imaginamos ser um velho senhor, com óculos grossos e o phisyquedurôle um tanto estereotipado próprio dos velhos contadores… Mas, para nossa surpresa, apareceu um jovem bem apessoado, de uns 30 anos no máximo, muito sério e competente, educadíssimo. Era de origem lituana e chamava-se Antonio Felix Dilinski. Dra. Nelly expôs a ele com toda a objetividade a situação real do Instituto, a dívida enorme com a Previdência, imprudentemente esquecida pela diretoria anterior, que vivia na esperança de uma anistia que nunca ocorreu. Mostrou a situação econômico/financeira calamitosa do Instituto quando tomou posse, com mais de 80% das entradas sendo consumidas por uma folha de pagamentos demasiadamente onerosa e uma sede social necessitando de urgentes obras de manutenção e restauro. Expôs a política administrativa que havia adotado, enxugando as despesas, mandando embora antigos empregados desnecessários e reduzindo o número dos funcionários registrados, de 12 para apenas 5. Expôs tudo com absoluta clareza e sem nada esconder.

O auditor, sempre muito amável, fez inúmeras perguntas e, numa agenda, tomou numerosos apontamentos. Depois despediu-se e foi embora, sem dizer se haveria de dar parecer favorável ou contrário… Ficamos na espera.

Mais quatro ou cinco semanas decorreram, quando, certa manhã, tocou meu telefone. Era novamente o Dr. Ermírio, declarando que iria ajudar o Instituto. Perguntou se nós preferíamos que ele desse uma única quantia maior, ou se preferíamos uma doação mensal menor, mas fixa.Respondi que não me cabia decidir; consultaria Dra. Nelly.

Quando consultei, disse a ela: “A meu ver, devemos pedir as duas coisas. Já que Dr. Ermírio se mostra tão generoso, é melhor aproveitar a ocasião e pedir as duas coisas: uma doação maior, para terminar de pagar a dívida antiga, e uma doação menor mensal, para incrementar as atividades”. A resposta dela me surpreendeu: “Não é decoroso, não é de bom tom abusar assim da generosidade de um benfeitor, ainda que rico e generoso como o Dr. Ermírio. É mais elegante fazer de outro modo”.

E ali mesmo redigiu com sua bonita letra um cartão ao Dr. Ermírio, dizendo que em vez de optar por uma das duas alternativas, preferia deixar a ele a escolha, confiando na generosidade e no espírito de cooperação dele”. O cartão foi entregue no escritório de Dr. Ermírio. Duas ou três semanas depois, Dra. Nelly me telefonou contentíssima, dizendo que acabara de receber um cheque de 100 mil reais, do Dr. Ermírio. Esse dinheiro, sabiamente administrado, garantiu a sobrevivência do Instituto.

Auxílio análogo foi dado, segundo fiquei sabendo, ao Colégio São Bento, que já tinha sido declarado fechado pela Ordem Beneditina, mas foi reaberto graças ao apoio do Dr. Ermírio e continua sendo, ainda hoje, um dos melhores colégios particulares de São Paulo.

A resposta elegantíssima da Dra. Nelly ao Dr. Ermírio, não fazendo a escolha, mas confiando-se à generosidade dele, é bem exemplo da personalidade dela. Qualquer outra pessoa teria se aproveitado da situação para pedir mais. Ela sabia, melhor do que ninguém, como o Instituto estava necessitado de dinheiro, mas preferiu manter a boa norma da antiga educação. Assim era ela. Em tudo.

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

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