Ainda a propósito da Dra. Nelly Candeias

Armando Alexandre dos Santos

 

Prossigo a matéria dos dois artigos anteriores, nos quais falei da atuação da saudosa Profa. Dra. Nelly Martins Ferreira Candeias (falecida no dia 27 de janeiro último), à testa do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

Antes de assumir a presidência do Instituto, Dra. Nelly teve larga atuação na USP, onde chegou a ser professora titular na área da Saúde Pública. Ter atingido o ponto mais alto da carreira acadêmica foi não pequena conquista, já que ela iniciou sua carreira acadêmica tardiamente, com cerca de 30 anos de idade.Essa é uma história que deve ser contada.

Dra. Nelly recebeu, menina e adolescente, ótima formação no tradicional colégio DesOiseaux, de São Paulo; casou-se muito cedo com o Dr. José Alberto Neves Candeias, médico português que conhecera na estância termal de Pedras Salgadas, em Portugal, e que imediatamente se apaixonou pela menina luso-brasileira. Ele tinha 27 anos de idade e já era professor de Medicina, em Portugal; ela tinha 16 anos e estava acompanhando os pais, em temporada de tratamento naquela estância de águas.

Por amor a Nelly, o Dr. José Alberto renunciou a uma carreira promissora em Portugal e decidiu transferir-se para o Brasil. A burocracia brasileira exigiu, para revalidar seus estudos já feitos na Europa, que ele se submetesse a exames de todos os níveis do ensino brasileiro. E ele, que já era professor universitário em Portugal, teve que decorar os nomes dos afluentes do rio Amazonas, do lado direito e do lado esquerdo… A jovem noiva foi, então, professora do futuro marido e “tomava as lições” dele, enquanto este se preparava para os exames!

Somente 10 ou 12 anos depois de casada, Dra. Nelly, incentivada pelo sogro, resolveu prosseguir seus estudos. Fez, então, o Exame de Madureza (nome que, na época, tinha o supletivo de Ensino Médio), para poder entrar numa universidade. Prestou, então, exames vestibulares e, na USP, fez graduação em Sociologia, seguida de mestrado e doutorado. Fez cursos no Exterior, lecionou em universidades estrangeiras e chegou a igualar o marido na titulação acadêmica. Ambos se aposentaram como professores titulares da USP, ele em Medicina, ela em Saúde Pública.

Foi depois de aposentada que, como salientei em artigo anterior, renunciou a uma bem merecida aposentaria na Europa e decidiu consagrar-se ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Foi a partir daí que tive o privilégio de conhecê-la bem, muito de perto, assim como ao Dr. José Alberto, de quem também conservo imensas saudades.

Integro o IHGSP desde outubro de 1994, quando fui eleito membro titular. Fiz parte da última “fornada” de ingressantes no primeiro século de existência do Instituto. Poucas semanas depois, este completaria 100 anos de existência. Em outubro de 2009, completados 15 anos ininterruptos de atuação, fui automaticamente, nos termos estatutários, transformado em membro emérito.

Já desde muito antes de 1994 eu frequentava assiduamente o Instituto, utilizava sua biblioteca e seu arquivo e mantinha boas relações de amizade com os membros. Já era por todos considerado habitué da casa, mas não fazia parte oficialmente dela. Isso porque, durante o longo período em que foi presidente o meu saudoso amigo Dr. Lycurgo de Castro Santos Filho, este optou por restringir ao máximo o recebimento de novos membros. Pensava ele (a parece-me que com razão) que o Instituto havia acolhido gente demais, que havia facilitado em demasia o acesso a suas fileiras, de modo que era preciso deixar o tempo se encarregar de ir fazendo sua seleção natural. Alguns morreriam (o que é inevitável, infelizmente!), outros iriam deixando de participar ativamente e iriam tomando distância da instituição, de modo que, em tempos futuros, poderia ser o sodalício renovado. Foi o que efetivamente aconteceu.  Nos seus dois ou três mandatos sucessivos, praticamente não entrou ninguém nos quadros sociais. Mas, logo que foi eleito presidente o Dr. Hernâni Donato (outro nome que cito com imensas saudades e ao qual muito devo), este novamente abriu as portas do Instituto para acolher novos membros, e foi então que entrei. Quando tomei posse, lembro que fomos saudados por Hernâni, e quem me entregou o diploma (e também o assinou) foi o antigo presidente Lycurgo.

A administração Hernâni Donato foi brilhante, como brilhante era o próprio Hernâni. Mas teve a infelicidade de ter um sucessor que rapidamente conduziu o Instituto a uma situação tão crítica que parecia inevitável dever acarretar o fechamento. Foi nesse momento que entrou em cena a Dra. Nelly e, à custa de muito trabalho e muita luta, salvou o Instituto, à testa do qual ficou 15 anos, até passá-lo para o atual Presidente, Prof. Dr. Jorge Pimentel Cintra – que é também um sábio, um lutador, um benemérito.

Se quisesse resumir, em poucas palavras, a personalidade de Dra. Nelly, eu destacaria, como qualidades, a inteligência, a força de vontade, a capacidade de trabalho, a pertinácia, o senso administrativo e econômico, tudo isso aliado a uma distinção pessoal, a uma nota de bom gosto e distinção muito natural, porque fruto de uma sólida educação nos bons ambientes luso-brasileiros em que foi formada. Também um senso de tradição, de decoro, a par de compreensão e aceitação dos recursos que a modernidade pode trazer, não incompatíveis com os valores da tradição. O apreço por esses valores morais, éticos e culturais, ou melhor, o verdadeiro culto desses valores sempre foi um traço marcantíssimo da personalidade de Dra. Nelly. A tristeza profunda que ela sentia por ver o Brasil tão distanciado desses valores, era nota sempre presente nas conversas com ela. Sua nostalgia serena e esclarecida pelos valores cultuados no Império e suas relações com a Família Imperial brasileira também eram traços distintivos de sua personalidade.

Mesmo quando arrastada injustamente, por opositores, a processos até mesmo na área criminal, sempre respondeu à altura, nunca recusou a luta, nunca recuou diante dela, mas sempre com extrema dignidade, sem nada que parecesse baixaria ou, mesmo, irritação ou perda do total autocontrole emocional.

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

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