Ainda sobre os religiosos construtores de pontes (conclusão)

ArmandoAlexandre dos Santos

 

Concluo hoje a exposição do pensamento tomista sobre as Ordens Militares de Cavalaria, que permite a compreensão não só delas, mas também das Ordens dos construtores de pontes, dos copistas de livros e outras mais que tenham existido, com objetivos específicos que nós, em nossa cultura e com nossa mentalidade contemporânea, não podemos deixar de considerar bastante singulares.

A questão 188da Suma Teológicaé dedicada a uma ampla exposição sobre a diversidade de ordens religiosas. Essa questão, assim como as anteriores que comentamos no artigo da última semana, era bastante polêmica na segunda metade do século XIII, já que São Tomás de Aquino estava vivamente empenhado, naquela altura, em disputas doutrinárias contra mestres que se opunham às ordens mendicantes (franciscanos e dominicanos). Acompanhemos sua argumentação.

Em primeiro lugar, deve-se destacar que era conveniente à beleza e ao esplendor da Igreja Católica que houvesse variedade nas formas de vida religiosa. Todas elas se ordenavam à perfeição da caridade, que é o amor de Deus e do próximo. Por isso, era conveniente que houvesse ordens dedicadas especificamente ao culto e ao louvor de Deus – e estas são as ordens da vida contemplativa; e também convinha que houvesse, a par delas, ordens dedicadas à vida ativa, para servirem ao próximo por amor de Deus.Por isso, é lícito, por exemplo, constituírem-se ordens religiosas destinadas ao estudo e à pregação, para a formação dos fiéis e sua defesa contra as heresias – este era bem o caso dos dominicanos, também impugnados por doutores sorbonnianos que viam, em seu modo de vida, algo contrário à essência da vida religiosa como até então se entendera; ainda aqui, o caráter polêmico da Suma Teológica é bem patente.

Quanto à liceidade de uma ordem religiosa ter como objetivo a vida militar, Tomás recorda o ensinamento de Santo Agostinho, que rejeitou a afirmação de que a vida militar é desagradável a Deus, lembrando que o rei Davi foi grande militar e muito agradou ao Senhor. Tomás pondera que, se o fim das ordens religiosas é agradar a Deus e a vida militar pode agradar a Deus, em princípio não há obstáculo a que se funde uma ordem religiosa para a prática da milícia. A seguir, desenvolve mais largamente seu pensamento:

Pode-se fundar uma ordem dedicada não só às obras da vida contemplativa, mas também às da vida ativa, naquilo que têm de serviço ao próximo e ao amor de Deus, e não no que se referem a negócios humanos. Ora, o serviço militar pode se ordenar ao serviço do próximo, e não só em ordem às pessoas privadas, mas também para a defesa de todo o estado. Por isso se disse que Judas Macabeu “combateu com alegria nas batalhas de Israel e aumentou a glória de seu povo”. Uma ordem religiosa pode, ademais, se ordenar à conservação do culto divino, pelo que se lê, do mesmo Judas Macabeu: “Lutaremos por nossas vidas e nossas leis”. E seu irmão Simão disse, por sua vez: “Sabeis quanto lutamos, eu e meus irmãos e a casa de meu pai, por nossa lei e nossas coisas santas”. Logo, pode-se convenientemente fundar uma ordem religiosa para a vida militar, não com um fim mundano, mas para a defesa do culto divino, do bem público, ou dos pobres e oprimidos, de acordo com o Salmo que diz “Salvai o pobre, livrai o indigente das mãos do pecador” (II-IIae, qu. 188.).

Qualquer obra de misericórdia poderia servir de elemento material para a constituição de uma ordem religiosa nova, desde que o elemento formal lhe fosse fornecido pela chancela da Igreja-mediante a aprovação de sua regra. Ora, defender os peregrinos e os fiéis em geral contra os que se opunham a seus atos de piedade e à prática da sua religião era, sem dúvida, uma obra de misericórdia, podendo perfeitamente servir de elemento material para a constituição de ordens religiosas. Esse é o argumento original e determinante de Santo Tomás a respeito das ordens militares. Contém ele, por extensão, a justificação teológica da instituição de ordens dedicadas a outras práticas de benfeitoria material, tal como a construção de pontes.

As obras de misericórdia são muitas, podendo revestir-se de modalidades bastante diversificadas. Mas elas são redutíveis, nos clássicos tratados eclesiásticos, a catorze, sendo sete espirituais e sete corporais. São obras de misericórdia espiritual: dar bom conselho; ensinar os ignorantes; corrigir os que erram; consolar os aflitos; perdoar as injúrias; sofrer com paciência as fraquezas do próximo; e rogar a Deus por vivos e defuntos. E são obras de misericórdia corporais: dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; dar pousada aos peregrinos; assistir aos enfermos; visitar os presos; e enterrar os mortos.

Essa é a síntese do pensamento tomista a respeito, formulado adequadamente por um teólogo do século passado, Mons. Paul Philippe, que foi Secretário da Sagrada Congregação dos Religiosos: “De modo geral, escreve Santo Tomás, ‘não existe obra de misericórdia em vista da qual não se possa instituir uma Ordem religiosa, mesmo se esta ainda não tiver sido fundada’”(Les fins de laviereligieuseselon Saint Thomas d’Aquin.Atenas: Éd. de la Fraternité de la Très-Sainte Vierge Marie, p. 88).(*)

Também a outro título a construção de pontes podia ser interpretada como eminente obra de misericórdia: tornava mais cômoda e mais realizável uma prática de piedade amplamente difundida na Idade Média, quais eram as peregrinações. Além dos três grandes focos de atração para os peregrinos medievais – Jerusalém, Roma e Santiago de Compostela – inúmeros outros santuários de maior ou menor projeção continuamente atraíam os fiéis, que empreendiam trabalhosas romarias, em grupos ou isoladamente. Para esses, as pontes, facilitando a travessia dos cursos de água, aliadas aos “hospícios” (hospedarias que abrigavam gratuitamente os peregrinos ao longo dos seus roteiros) eram uma obra de misericórdia assinalada.

 

(*) Ver, a respeito, COSTA, Ricardo da; SANTOS, A. A. dos . O pensamento de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) sobre a vida militar, a guerra justa e as ordens militares de cavalaria. Mirabilia (Vitória. Online), v. 10, 2010, p. 145-157; e SANTOS, A. A. dos. Sobre instituições religiosas medievais dedicadas à construção de pontes e sua justificativa teológica. Atas do X Encontro Internacional de Estudos Medievais (EIEM). Brasília: Associação Brasileira de Estudos Medievais – ABREM, 2013, v. 1, p. 188-196.

___

ArmandoAlexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima