Religiosos construtores de pontes: uma visão teológica

Armando Alexandre dos Santos

 

Falei, na semana anterior, de meus estudos sobre os Irmãos Pontífices, que se coligavam na Idade Média em associações religiosas destinadas à construção de pontes. Vejamos agora, numa perspectiva estritamente teológica, a figura dessas instituições.

Na ótica dos homens contemporâneos, habituados à separação das esferas espiritual e temporal da vida, não deixa de ser singular a ideia de que a construção de pontes possa ser matéria adequada para motivar a criação de uma ordem religiosa. Construir pontes é, por sua própria natureza, uma atividade civil, destinada a melhorar as condições da vida material dos povos, nada tendo, em si mesma, de religiosa.  Por que ver nela a motivação básica para a instituição de uma ordem religiosa?

Enquanto estudava o assunto, encontrei também referências a outra ordem religiosa, existente na Baixa Idade Média na região das Flandres e em certas partes do Sacro Império, a qual tinha por objetivo a educação das pessoas e se aplicava especificamente à transcrição de manuscritos antigos. Seus membros, por voto e por obrigação de cunho religioso, se empenhavam em trabalhar para a difusão do conhecimento, transcrevendo manuscritos religiosos e também profanos que não versavam sobre temas religiosos. Com o advento da imprensa, no século XV, esses religiosos se adaptaram aos tempos novos e passaram a exercer por meio de obras impressas sua atividade. Os membros dessa singular instituição – aliás, bastante comentada e até controvertida – eram chamados de Irmãos da Vida Comum. Ao que parece, foi membro dela o famoso Tomás de Kempis, autor da clássica obra Imitatio Christi.

Outras instituições religiosas medievais que também causam estranheza à mentalidade contemporânea são as Ordens Militares de Cavalaria. Eram constituídas por religiosos que se consagravam a combater os infiéis, defendendo a Terra Santa e protegendo militarmente os peregrinos contra os maometanos. A Ordem do Templo de Jerusalém (dos Cavaleiros Templários), a Ordem Militar e Hospitalar de São João de Jerusalém (dos Hospitalários, atualmente de Malta), a Ordem do Santo Sepulcro, a dos Cavaleiros Teutônicos, a de São Tiago da Espada (Cavaleiros Espatários ou Gladíferos) e muitas outras são exemplos de Ordens militares de cavalaria.

Como explicar que matérias que, de si, nada têm de religioso, como construir pontes e copiar manuscritos, ou que até têm algo que parece chocar-se frontalmente com o espírito religioso, como derramar sangue em batalha, possa ser objeto de motivação primária para uma Ordem religiosa?

De acordo com a mentalidade medieval, que era profundamente teocêntrica, toda a vida humana se regia pela religião, tudo se ordenava à prática religiosa e tinha a Deus como início e fim. Assim sendo, a noção de que a esfera religiosa e a vida civil constituem compartimentos estanques pura e simplesmente não existia. Sendo tão ampla a esfera do sagrado, não restava muito espaço para o profano. Nada havia que não pudesse ser, de algum modo, abarcado pelo sagrado e pelo religioso.

Estudando o pensamento de São Tomás de Aquino sobre as Ordens Militares de Cavalaria, exposto na Suma Teológica, encontra-se base para a compreensão não só delas, mas também das Ordens dos construtores de pontes, dos copistas de livros e outras mais que tenham existido, com objetivos específicos que nós, em nossa cultura e com nossa mentalidade contemporânea, não podemos deixar de considerar bastante singulares.

É interessante seguirmos a argumentação de Tomás de Aquino, para justificar a existência de ordens religiosas destinadas à luta armada. É uma argumentação curiosa, que surpreende pela originalidade.  O Aquinate estuda a vida religiosa in generenaSuma Teológica, parte II-IIae, questões 186 a 189.

Na qu. 186, discorre sobre natureza do estado religioso, que consiste verdadeiramente num estado de perfeição, no qual os religiosos fazem a Deus o sacrifício de suas pessoas, num ato de oblação que constitui como que um holocausto. O estado religioso, conforme explica essa questão, se ordena à perfeição da caridade e é constituído, essencialmente, pelos votos de obediência, de castidade e de pobreza.

Por meio desse tríplice voto, o religioso oferece em oblação a Deus tudo quanto lhe pertence, sacrificando: 1) seus bens exteriores (pelo voto de pobreza); 2) seu corpo (pelo voto de castidade); 3) e sua própria vontade, ou seja, sua liberdade individual (pelo voto de obediência). Dos três votos, o mais excelente é o de obediência, porque a vontade humana é, de si, um bem mais valioso do que o corpo ou os bens exteriores, e também porque o voto de obediência de alguma forma contém os outros dois. Por força da consagração própria da vida religiosa, qualquer ato virtuoso ordenado ao serviço de Deus e para a honra divina, ainda que de si sejam materiais, humanos e até profanos, converte-se em ato religioso. Por isso, todos os atos bons realizados por religiosos adquirem mérito e valor especiais, pela excelência da própria virtude de religião.

A qu. 187 trata das coisas que são permitidas e proibidas aos religiosos, e a 189 estuda as condições para o ingresso na vida religiosa. Essas duas questões apresentavam, na época, não apenas interesse puramente especulativo, mas revestiam-se de atualidade e tinham caráter apologético, porque se inseriam na polêmica travada por São Tomás, em companhia do franciscano São Boaventura (1221-1274), contra os partidários de Guillaume de Saint-Amour (1202-1272) e Gérard d’Abbeville (†1272), inimigos das então novas ordens mendicantes.

Na qu.187, Aquino sustenta que é lícito aos religiosos viverem de esmolas, não por ociosidade, mas para exercitarem a virtude da humildade. E que lhes é lícito, igualmente, vestirem-se de modo mais pobre e vil que o comum das pessoas. Com sua argumentação, ele defendia os franciscanos contra os que criticavam o seu modo de vida.

A qu. 188, que mais diretamente nos interessa,é dedicada a uma ampla exposição sobre a diversidade de ordens religiosas. Concluiremos no próximo artigo.

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

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