Caminho sem volta

José Machado

 

A opinião pública parece ter perdido de vez a paciência com o atual mandatário maior do País. Há muito não se ouvia um panelaço com a estridência e a extensão da última sexta (15).

O panelaço se deu na esteira da repercussão sobre a tragédia que acometeu Manaus na semana passada, quando pacientes hospitalizados por Covid 19 vieram a falecer asfixiados, por falta de equipamentos de oxigênio. A falta dos equipamentos por si só já revelava uma situação de descalabro a justificar o ato público, contudo, veio a se somar ao contexto o sentimento de compaixão e de solidariedade às vítimas e a revolta pela incapacidade de agir, senão pela indiferença, do governo federal, o qual, aliás, já estava alertado para a iminência do ocorrido, e nada fez.

É inacreditável que o atual ocupante do Palácio do Planalto, vendo milhares de brasileiros sucumbindo à doença insidiosa, mantenha-se na sua postura negacionista, irresponsável e criminosa: nega a gravidade da doença; nega a relevância do número de óbitos; zombou até onde pode sobre a relevância da vacinação em massa; troca o planejamento por trapalhadas; abdica de liderar e articular, enfim, de governar; dedica-se, na maior parte do seu tempo, a trocar farpas com os adversários políticos em torno de questões bizarras e da defesa dos filhos; exibe-se em público sem máscara, favorecendo a aglomeração em torno de si e, portanto, dando mau exemplo. É uma sucessão interminável de barbaridades, nunca vista na história brasileira, mesmo nos governos de Jânio Quadros e de Collor.

O atual governo é, de longe, o pior de todos os tempos no Brasil. Não é pior simplesmente pela sua incompetência político-administrativa, que é notória, mas também, e sobretudo, em razão da sua feição de corte fascista, que se traduz nos riscos humanitários, civilizatórios e à ordem democrática que acarreta. O desleixo com a pandemia chama-se genocídio!

Assistimos ao desmonte das políticas sociais e, mercê de doutrinas anacrônicas, ao descalabro econômico, que se agravou em razão da pandemia. A combinação desses fatores jogou o País à beira do precipício, quebrando empresas, jogando milhões de brasileiros no desemprego e na precarização e trazendo de volta o espectro da fome e da miséria. Na questão ambiental, assistimos à devastação da Amazônia e do Cerrado. Nossa política externa abdicou do princípio da soberania e jaz aos pés do Império. O Brasil, que há até pouco tempo atrás era reverenciado no mundo todo, hoje é motivo de chacota.

O panelaço da última sexta-feira traduz inquietude e desespero crescentes de amplos setores sociais diante da hemorragia que acomete o país, trazendo à baila o desejo, que começa a se espraiar, pelo impeachment do presidente.

Essa é uma questão espinhosa porque nos faz pensar que o impeachment é um instrumento democrático, previsto na Constituição, que não pode ser banalizado. Nos regimes presidencialistas, governos ruins amargam a impopularidade e são eventualmente acossados pela opinião pública e pela mobilização popular, ensejando possibilidades de mudanças para melhor ao longo dos mandatos, caso contrário, são levados de roldão, com desfecho imprevisível, inclusive o da renúncia; ou se arrastam até as próximas eleições. A regra democrática constitucional de nosso país prevê que os pesos e contrapesos das instituições republicanas funcionem adequadamente para inibir e vedar eventual abuso de poder e, caso não cometa crime de responsabilidade, o governante e seu governo serão avaliados e eventualmente substituídos através de eleições regulares, sob a égide do voto popular, e não pelo recurso a instrumentos excepcionais, mesmo que estes estejam protegidos pelo manto democrático. A não observância dessa regra faz do instrumento excepcional uma ferramenta para viabilizar golpes de Estado e não para proteger o país e a democracia.

São dezenas, todavia, as acusações de crime de responsabilidade cometidas pelo atual ocupante do Palácio do Planalto e os requerimentos para abertura do processo de impeachment se acumulam na gaveta do atual Presidente da Câmara dos Deputados, o qual não deu andamento aos mesmos com a desculpa de que a prioridade do país é o combate ao coronavírus e que o debate centralizado sobre o impeachment drenaria a energia necessária a esse combate. Essa é uma desculpa esfarrapada e revela tibieza, apesar de que, convenhamos, a exigência do impeachment apenas agora começa a se cristalizar na opinião pública, não havendo, portanto, até então, correlação de forças favorável a essa medida no Congresso Nacional.

A perceptível mudança da opinião pública evocada pelo panelaço, pelas razões aqui aventadas, leva a crer que o clamor popular pelo impeachment ingressou num caminho sem volta e só tende a crescer.

Apegado às suas toscas e ameaçadoras convicções e, portanto, inabilitado para articular e negociar uma solução política democrática para a crise que o envolve e envolve o país, o presidente da república poderá conhecer, doravante, o derretimento da sua imagem.

Sempre haverá a tentação presidencial por uma saída populista para ganhar fôlego e se arrastar até 2022, contudo, o remédio é caro e exigirá, entre outras medidas, a revogação da Emenda Constitucional do Teto de Gastos (EC 95), a qual, aliás, é uma medida urgente e necessária, porém impensável aos olhos e interesses do mercado.

A busca pela saída autoritária, calcada no apelo às Forças Armadas, não pode ser descartada, não apenas porque corresponde ao perfil do presidente, mas porque, na prática, elas já exercem a tutela sobre o governo, mesmo ao preço de um crescente prejuízo à sua imagem perante a nação. O papel do general Ministro da Saúde é um vexame completo.

A atual situação política do país é gravíssima e, turbinada pela crise econômica e social, tende a piorar ao longo do corrente ano, exigindo dos brasileiros que prezam a democracia, para além das suas convicções partidárias e ideológicas, que se unam em defesa de uma saída democrática, pacífica e socialmente justa.

Se o impeachment for a solução, que seja.

___

José Machado, economista, prefeito de Piracicaba por dois mandatos (PT)

 

 

 

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima