No século XII, religiosos construtores de pontes

 

Armando Alexandre dos Santos

 

Existiram na Idade Média religiosos especialmente dedicados à construção de pontes. Eram conhecidos como Irmãos Pontífices, ou seja, fazedores de pontes. Essa curiosa ordem religiosa teve origem em Avinhão, na França, e sua primeira realização foi a famosíssima Pont d´Avignon, celebrizada por uma cançoneta popular que até hoje é cantada pelas crianças francesas. Dessa ponte apenas uma parte resistiu ao tempo. Os turistas a percorrem até mais ou menos a metade da sua extensão inicial. O resto, foi destruído há 350 anos, num período de chuvas em que o rio Ródano, com o volume de água muito acrescido, arrasou com seu ímpeto boa parte da construção.

A Ponte de Avinhão, que é considerada a maior obra de engenharia do gênero produzida durante toda a Idade Média, e sobre um rio particularmente caudaloso e de águas revoltas, tem sua origem bem documentada em narrativas quase coevas, que remetem à figura emblemática de Bénézet (diminutivo de Bento, no dialeto local), menino pastor que teria dado início à construção em meio a episódios maravilhosos registrados pelos hagiógrafos. De acordo com os relatos medievais, auxiliado pelo bispo e pela burguesia da cidade, Bénézet, com 11 anos de idade, foi quem iniciou a construção da ponte de avultadas dimensões, que atingiria 920m de extensão, sobre cerca de 20 arcos, tendo uma largura de 4m – o que era mais do que suficiente para a época. As dificuldades para a realização dessa obra, cuja necessidade se fazia sentir desde os tempos do Império Romano, sempre tinham obstado a sua concretização. Até mesmo Carlos Magno, quando esteve em Avinhão, ordenara estudos sobre a construção de uma ponte, mas recuara diante do vulto ingente da tarefa.

O pastorzinho empreendeu a obra em 1177. De início, segundo as crônicas, surpreendeu o bispo e os cidadãos do burgo dizendo ter ordens do Céu para construir a ponte. Não lhe deram crédito. Mas uma sequência de milagres, cândida e piedosamente registrados nos relatos da época, convenceram os avinhonenses de que Bénézet era realmente um enviado de Deus, pelo que decidiram apoiá-lo. Teve início então a obra, que se estendeu por 11 anos. Embora seja surpreendente a rapidez da construção, está ela bem documentada e solidamente assentada nos registros históricos da cidade, de modo a não haver dúvidas a respeito.

Estava a obra pelo meio em 1184, quando, aos 19 anos, faleceu Bénézet, sendo sepultado numa capela erigida na própria ponte. A voz popular imediatamente o aclamou como santo, sem esperar a canonização oficial. Quando Bénézet morreu, as dificuldades iniciais da construção, que tinham sido de grande monta, já estavam superadas, de modo que a obra teve andamento e foi concluída em 1188. Os construtores, ao final do trabalho, se articularam em forma de uma associação religiosa, a Ordem dos Irmãos Pontífices, que a partir daquele primeiro trabalho prosseguiu suas atividades em outras partes da França e da Europa, estendendo sua atuação até o século XV, quando se extinguiu.

O corpo de Bénézet permaneceu na capela, situada no meio da ponte. Em 1669, parte da ponte ruiu, em decorrência de uma forte cheia do rio, mas a parte em que estava a capela permaneceu de pé. Receando que também a capela fosse arrastada pela fúria das águas, as autoridades eclesiásticas locais decidiram transferir os restos mortais de Bénézet para a igreja dos monges celestinos, de Avinhão, ali ficando num sepulcro que foi depredado e profanado durante as perturbações da Revolução Francesa. Na mesma ocasião, os arquivos eclesiásticos da cidade foram devastados, sendo destruída a maior parte da documentação primária referente ao período medieval de Avinhão. Curiosamente, a capela situada sobre o terceiro arco da ponte resistiu às águas e ao tempo, ainda hoje estando de pé e constituindo ponto de atração turística na cidade de Avinhão. A ponte a meias derruída e com a capela ainda ereta é tema frequente para pintores e desenhistas; muitas centenas de fotografias, produzidas por fotógrafos em ângulos muito diversos, foram transformadas em cartões postais. A iconografia é vastíssima, pois. Qualquer leitor que procure, por um mecanismo de buscas do gênero Google, por “Pont d´Avignon” encontrará dezenas de fotografias da ponte e da capela que ainda se conserva sólida.

Apresentei há alguns anos, num Congresso de História Medieval realizado na Universidade de Brasília, uma comunicação sobre essa curiosa ponte e sobre a ordem religiosa a que ela deu origem. Causou sensação, pois nenhum dos presentes podia imaginar uma ordem religiosa destinada a construir pontes…

Mais tarde, o aprofundamento das pesquisas me levou à conclusão de que, paralelamente à obra de Saint-Bénézet d´Avignon e até antes dela, em diversos outros pontos da França e da Europa houve associações religiosas especificamente destinadas à construção de pontes. Talvez não tenha sido Bénézet o iniciador da Ordem dos Irmãos Pontífices, mas apenas se terá inserido no âmbito de uma Ordem anterior e de maior envergadura. Apareceram também dados que permitiram levantar a hipótese de não ter havido uma única Ordem de Irmãos Pontífices, mas ter havido várias instituições independentes e de formação autônoma, sendo algumas delas Ordens religiosas propriamente ditas, e outras se revestindo de modalidades diversas de constituição canônica, à maneira de confrarias ou pias uniões de leigos sem votos e sem compromissos formais de dedicação integral e definitiva de suas vidas. Por fim, pude constatar que a obra de construção de pontes frequentemente se associava a outra de interesse análogo: o estabelecimento de “hospícios” – ou albergues para abrigar os viajantes e peregrinos, sem custo, por caridade.

Tudo isso é muito surpreendente, sem dúvida, para a mentalidade contemporânea. A Idade Média, quando estudada seriamente e sem preconceitos, é uma verdadeira caixa de surpresas.

Continuaremos o assunto na próxima semana.

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

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