Por e para 2021, a “Salve Rainha”

Cecílio Elias Netto

 

Cada um de nós tem – ou pode ter – momentos culminantes na vida. São aqueles – poucos, é verdade – com a força da transformação, os que nos abrem a mudanças. Admito, felizmente, havê-los tido. E, de quando em quando – dependendo de minha abertura de alma – tenho-os. Pois é realmente admirável – vejo-o assim – como a vida se nos revela a cada instante, na impressionante magia de mostrar-se nova mesmo naquilo que nos parece antigo ou já conhecido. Quando a alma se renova, os olhos enxergam o que veem.

Casar, ter filhos, eis alguns deles, que, erroneamente, podem parecer-nos corriqueiros, apenas leis da vida. São, porém, determinantes, responsáveis por consequências totalizadoras. Há, porém, momentos particularíssimos, tão próprios de cada um que não há como dividi-los com outros. Podem repercutir, mas não é possível a compartilha. Seria como saborear uma fruta, cujo sabor é especial para cada qual que a saboreie.

Conheci um desses momentos fundamentais como se um raio me atingisse, se um relâmpago me iluminasse na escuridão. Teólogos dão-lhe, a essa revelação, o nome de querigma: anúncio do mistério, primeiro anúncio da fé. Era a madrugada, 2h15, de 7 de julho de 1967. De frio feito de neblina, uma que outra lâmpada acesa nas proximidades. Aos meus 27 anos, com duas filhinhas, tentando sobreviver aos horrores da ditadura, ainda imaturo para suportar o peso de tantas responsabilidades – lá estava, eu, no Seminário Diocesano, na Nova Suiça, ouvindo e vendo maravilhas que pareciam não me alcançar. Há poucos anos saído da juventude comunista, ainda era, minha visão de mundo, marcada por um falso materialismo que negava espiritualidades. E eu não conseguia encontrar a embriaguez de escrever.

Aconteceu. Na noite angustiante, encostei a cabeça na tela de um viveiro que eu mal percebera estar ali. E, repentinamente, duas avezinhas começaram a voar, assustadas, como que pressentindo algum perigo. E, no chão, duas pequeninas cobaias – uma, branquinha; outra, pretinha – começaram a correr, também alvorotadas, achegando-se uma na outra como que em busca de proteção. Então, o raio despencou sobre mim. E o relâmpago foi tão luminoso que me atingiu não apenas a inteligência e o coração – mas todas as coisas vivas e pétreas do descampado.

O divino revelara-se para mim de uma forma tão simples que poderia parecer humilhante: através dos bichinhos. E foi neles que entendi: eles se protegiam, eles comungavam, viviam sem preconceito. E eu, com minha descrença? Impulsionado por não sei quê, fui à capela. Na penumbra, sorrindo, lá estava ele à minha espera: D. Aníger Melilo. Que apenas falou: “Eu o esperava, filho.” Desabei em seus braços e senti-me purificado. Acontecera, em mim, a bênção da fé.

A partir daquela abençoada madrugada, fiz-me peregrino em busca de entender a Vida. Sou, ainda, um aprendiz de católico, com altos, baixos, entusiasmos e desânimos, crendo e descrendo. Em muito creio. Penso que no essencial. Mas insisto em ser um “eterno aprendiz”.

Neste final de ano e em nosso caos, lembro-me da “Salve Rainha”, súplica que, no passado, tanto menosprezei. Hora de invocar “a Mãe de Misericórdia, Vida, Doçura, Esperança nossa”.  E “nós, os degredados, filhos de Eva”, bradar e suplicar “gemendo e chorando, neste vale de lágrimas”. Agora, neste degredo, neste vale de lágrimas, pedir: “Mostrai-nos Jesus, bendito fruto do vosso ventre”.

O quê, senão isso?

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Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana ([email protected])

 

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