Missa do galo

Camilo Irineu Quartarollo

 

Muitos passarão um natal de covid mesmo, sem sair de casa; outros sem covid, mas sem dinheiro, de casa não sairão. Fica-se como velha curiosa ouvindo ruídos dos que ficaram nos retratos, na sua caixa de prevenir esquecimento, retratos, orações, medalhinhas, terços, memórias afetivas dos pais, tios, filhos e até de algumas pequenas mágoas, pois nem tudo é como a caixa de lembrar. Mudam-se coisas daqui e dali como se estivesse arrumando um presépio e afetos embotados. Algum cão solitário ladra ou chora, cujos donos saíram para confraternização aglomerada ou em família. Por vezes cães são ótimas companhias quando gente e cachorro se aquecem mutuamente. Poderia ser o Quincas Borba à espera de Machado, enquanto uma solidão vizinha espia o silêncio do natal no arrebol. Lá fora a noite se avizinhou e chuviscos invadem a janela a precipitação sem aviso e a aragem fresca suaviza os ares dantes lúgubres. O cachorro aquietou-se.

Antes dos últimos papas mais arcados de idade e missas, a do galo era mesmo à meia-noite. Pontualmente. Hora trevosa em que a noite encontra o dia e no sertão surgem as mulas sem cabeça, o lobisomem, o saci, o curupira. Até o ruidoso Salto de Piracicaba se aquieta nessa hora, parando por um segundo, mas o caipira conta causo de uma assombração por vez. São tantas, mas não gosta de misturar para não perder o fio da prosa, continua falando, ara, é causo comprido. Há ouvintes medrosos dos causos, os mais afoitos e a minoria que, temerosa, ainda pega um livro para esquecer do medo, como eu mesmo faço. Neste ano até o natal assombra.

Machado de Assis traz o conto A missa do galo em jornal da época, do tempo em que se dormiam com as galinhas. Sou transportado ao século XIX, quando não tinha covid. Antes que o galo cante Machado passa a narrar como foi esta data no interior de uma casa assobradada à espera da missa que não se fazem nas roças. O escritor tem uma narrativa avançada para a época, sem deixar de ser fiel à visão dos personagens capta essa realidade circunstancial, atravessa este texto e o tempo para conversar com o leitor.

O escritor conta de um jovem, um “franguito” de dezessete anos, mas homem urbano e contido diante de uma mulher casada e boa, compreensiva demais com as traições costumeiras do marido, o qual saía frequentemente à noite para aventuras amorosas. Nessa noite um jovem pacato e leitor de Alexandre Dumas, deixa a leitura de lado e se entretém numa quase aventura, antes que o galo se arranje no poleiro.

Quase vejo o castiçal a bruxulear e a parafina derretida em grumos na base. Pelo corredor a mulher que viera de roupão em penumbras encontrou um acordado na sala junto ao castiçal, ela descansa o que trouxera do quarto ao lado deste. A casa ressonava, mas ela sofria da insônia e não por missa de roça ou cidade. A mulher sem se lamentar vai soltando “confidências” do seu cotidiano conformado…

Enfim, o “franguito” foi à missa do galo e de corpo presente, a cabeça…

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Camilo Irineu Quartarollo, Escrevente Judiciário e escritor independente, autor do livro A ressurreição de Abayomi dentre outros

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