Alê Bragion
Quando na noite não há mais som, mais movimento, mais luzes ou desejos, “leio até me arderem os olhos” a Crônica aos Amigos, de Vinícius de Moraes, e me lembro de vocês, meus amigos fisicamente presentes – e também de outros tantos e tantos amigos que, infelizmente, a vida levou para longe e que hoje se misturam às multidões que cruzam as ruas do mundo. Lendo a crônica de Vinícius, me espanto: quanto mistério há no conhecer o mundo, as pessoas e os bichos.
Quanto mistério há no encontrar pela vida aqueles a quem chamaremos de amigos fiéis, de anjos da guarda, de filhos “não naturais” que recebemos de presente (ou por empréstimo) do universo. Afinal, em meio a tantos seres distintos, imersos num mundo de coloridos e formas, encontramos repentinamente companhia e amizades especiais, encontramos companheiros que viajam conosco ao longo de uma parte (grande ou pequena) de nossa misteriosa jornada terrena.
Se viajamos pela vida ao lado de nossos amigos, lembremos sempre, como nos disse o poeta – já em seu Soneto do Amigo – que, na vida, um amigo só se vai ao ver outro chegar. E como são duras essas chegadas e partidas, como nos marcam na carne e no sangue o até logo que se torna “momentâneaeterna” despedida. Então, aprendemos, ainda com o poetinha, que “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.” E nos resignamos, seguimos sempre adiante – resilientes que somos – plenos de uma memória afetiva que nunca termina e cheios de um ávido amor pelos amigos que se foram e pelos que ainda encontraremos no por vir.
Como disse Vinícius, há amigos que nem sabe que gostamos tanto deles. Pior: há amigos que nem sabem que são nossos amigos. Há amigos que conquistam esse status, mas nem imaginam que os colocamos em nosso “seleto” grupo de amigos – e, diante de um repentino convite para uma cerveja ou para um jantar, chegam mesmo a esboçar um olhar de supremo espanto ante nossa afetividade subitamente revelada. Há amigos que vemos poucas vezes ao longo da vida, mas que estão sempre presentes em nossos melhores pensamentos. Aliás, quantos bons amigos só estão presentes apenas em nosso pensamento, quantos assumem a forma incorpórea do sonho, da ilusão – e seguem conosco por nossa vida afora: firmes, justos – porém etéreos.
Alguns amigos me vêm à mente quando abro um livro. Outros me saltam à memória quando, mecânica e ternamente, balanço o gelo de meu copo de uísque. Outros ainda falam com minhas lembranças se, diante de uma paisagem fantástica, me vejo estupefato e sem ação. Ainda outros falam comigo quando de minhas preces e orações, quando mais deles preciso em minhas mais íntimas reflexões. Então, um gesto, um olhar, um cheiro, uma palavra deles me chega pelo ar – afinal, “o ar tem cheiro de lembrança,” nos ensinou Guimarães Rosa. Por fim, há amigos fiéis com os quais, em espírito, durmo e acordo todos os dias da minha vida – e, deles, não espero nada mais do que o simples fato de continuarem a existir.
E assim, antes de fechar a janela das minhas noites, peço a Deus por eles – amigos de se pegar com as mãos. Peço que se construa segura e perfeita a estrada sob seus pés. Que se entrelacem exatas e justas, no texto vital de cada um, a força do espírito, a sabedoria do existir e a beleza de estar vivo. Então, agradeço a Ele pelo fato de existirem amigos em minha vida e sinto, em verdade, – e parafraseando Vinícius – que eu sofreria se morressem todos os meus amores, mas que eu desabaria e também morreria se eu perdesse todos os meus amigos.
Por isso, neste ano – tantas vezes triste, tantas vezes duro – que se finda, ao piscar das luzes de natal na janela daquela casa mais simples e mais singela, vibro com elas a certeza de que um brilho maior me une aos meus amigos e amores para sempre. Também assim ao sentir brilhar a estrela do natal no presépio mais angelical e mais repleto de animais o possível, tenho a garantia de que, estejam onde estiverem os meus amigos – e todos a quem amo – estarão eles sempre reverberando também dentro de mim a sua centelha mais que divina a me animar sempre. Sempre!
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Alê Bragion, professor, editor do Diário do Engenho