José Renato Nalini
Meritocracia é uma palavra muito usada em todo o planeta. Significa o predomínio, numa sociedade, organização, grupo, ocupação ou qualquer outra ideia coletiva, daqueles que têm mais méritos. Ou seja, merecimentos. Em regra, são os mais capazes intelectualmente, os mais dotados de inteligência e outros atributos mensuráveis por aferição científica.
É um vocábulo híbrido, formado por mérito, de origem latina e cracia, de procedência grega. Não deixa de ser uma ideia sedutora. A inspiração é selecionar por critérios objetivos, que evitem o personalismo, a proteção, o nepotismo, o filhotismo e outras práticas nefastas.
Foi por isso que o ordenamento brasileiro elegeu o concurso de provas e títulos como o ideal, por conciliar valores democráticos – todos em tese podem se submeter ao certame – e meritocráticos – serão aprovados os detentores de mais qualidades.
Será inteiramente verdadeira tal solução?
Tenho sustentado há muito tempo que os concursos públicos para ingresso às carreiras jurídicas priorizam a capacidade mnemônica e negligenciam outros atributos. A constatação da falha tem origem na educação formal. Avaliar de acordo com a memória não é suficiente. Até a prestigiada OCDE vai alterar o seu exame PISA, aquele em que o Brasil está sempre na rabeira, para incluir as habilidades socioemocionais.
Saber de cor o nome das capitais, dos afluentes dos rios, dos coletivos, ou de cor e salteado as várias tabuadas, não significa, necessariamente, ser o melhor. Empatia, capacidade de comunicação, adaptabilidade, condições de enfrentar o inesperado, relacionamento, sensibilidade, respeito pelo próximo, amor à natureza, tudo isso faz parte de uma personalidade apta ao desempenho de uma função estatal.
Os concursos ocorrem durante o ano todo em todo o Brasil e geram a categoria dos “concurseiros”. Jovens que permanecem a amealhar um acervo memorialístico de toda a legislação, doutrina e jurisprudência produzida no Brasil. Prestam todos os concursos públicos, não escolhem por vocação, mas querem ser aprovados e, posteriormente, ser nomeados. Em qualquer Estado da Federação. Para qualquer dos ramos da profissão jurídica: juiz, promotor, defensor, procurador, delegado de polícia, etc.
Como toda mudança é traumática, não se vislumbra qualquer alteração da sistemática. Mas é reconfortante verificar que pensador de prestígio, como Michael Sandel, pensa de forma análoga. Seu livro “A tirania do mérito” sustenta que a meritocracia é uma ficção. Bonita, mas falaciosa. Nem sempre aquele que conseguiu guardar na memória o maior número de informações será um profissional em quem se possa confiar a guarda da liberdade, o patrimônio, a honra, a família das pessoas.
Um aspecto que merece observação atenta daqueles que se satisfazem com a sistemática atual é a tendência à formação de uma casta. Nada mal pensar-se em casta como parcela qualificada, munida de singularidades como erudição, equilíbrio, sensatez, consciência ética e outras condições pessoais que traduziriam virtude. Só que existe o risco de se formatar grupos arrogantes, prepotentes e insensíveis.
Posso afiançar que o sistema Justiça contribui para esse fenômeno. É que os concursos públicos atraem dezenas de milhares de candidatos. As vagas não são muitas e o resultado é a aprovação de algumas dezenas deles. O discurso dos responsáveis pelo recrutamento é sempre no sentido de enaltecer as excepcionais qualidades dos classificados. “Muitos são os chamados, poucos os escolhidos”. É o que fortalece alguma inclinação a se considerar superior aos demais, a começar dos que não foram bem sucedidos na corrida de obstáculos a que se submetem.
Não é diferente o critério dos vestibulares, embora de menor gravidade. Para iniciar um curso universitário, vocação nem sempre é levada em conta. Ingressa-se naquele em que se logrou aprovação. Menos mal, porque há sempre a possibilidade de se cursar outra graduação.
Muito diversa a situação dos cargos públicos. Nas carreiras estatais, o povo pagará por alguém não vocacionado por longo período. Em seguida, arcará com proventos e com pensões. A modalidade atual não consegue prevenir a ocorrência de um equívoco. E os esquemas de vitaliciamento são formalidades que não conseguem escoimar a instituição de pessoas que a elas não se ajustem. Todas, é a norma, são assimiladas, a partir da nomeação.
Será que no século 21, não se dispõe de metodologia mais eficiente para a seleção dos titulares dos cargos públicos? Alguns exemplos, ainda que poucos, simbolizariam verdadeira “desonra ao mérito”, a recomendar adequada reformulação, para prover as Instituições de profissionais tecnicamente preparados, mas também humanamente comprometidos com a edificação de uma Pátria justa, fraterna e solidária.
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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo