Adelino Francisco de Oliveira
A dinâmica do processo da campanha eleitoral, para a prefeitura de Piracicaba, acabou me levando a percorrer os bairros mais diversos e também mais remotos da cidade, mergulhar em realidades invisibilizadas e experimentar cotidianos marcados pela mais dura negação de direitos básicos. Pude estar diante de situações limites, caracterizadas pela vulnerabilidade mais extrema. É essa realidade invisível que revela as dimensões de uma Piracicaba profunda.
A fome é sem dúvida a expressão maior e extrema da vulnerabilidade, da negação sistemática de todos os direitos. A alimentação é um bem básico, que garante a saúde do corpo e a própria manutenção da vida. Ouvi muitos relatos e também pude presenciar famílias inteiras vivendo um perverso e doloroso cotidiano de fome, sem o direito básico à alimentação devidamente assegurado. Uma família, com cinco filhos, relatou seu cardápio: uma única refeição diária de feijão com farinha. Outro casal, com oito filhos, contou sobre as estratégias para suportar um dia inteiro sem fazer nenhuma refeição completa. Formas dramáticas de enganar e suportar a fome.
A questão do direito à moradia – ou a ausência deste direito – também se desvela como uma gritante realidade em Piracicaba. A cidade vive um processo de favelização, com milhares de famílias que não têm onde morar ou vivem em habitações marcadas por condições muito precárias. O problema da moradia desponta em todas as regiões da cidade, mas há realidades bem dramáticas. Em uma determinada comunidade, com constante falta de água e esgoto a céu aberto, um senhor perguntou-me: – a prefeitura não teria condições de ajudar com material para que ao menos pudéssemos rebocar nossos barracos? Tendo o material, faríamos tudo por mutirão! É sempre bom lembrar que morar com dignidade é um direito fundamental.
É impensável que ainda haja tantas pessoas não alfabetizadas em uma cidade tão rica e pujante quanto Piracicaba. O analfabetismo funcional demarca uma existência cheia de privações, sem o direito de ler o mundo. Na era da informação, não saber ler nem escrever configura-se como uma grave marca de exclusão social. Sem dúvida o analfabetismo é mais uma das realidades dramáticas invisibilizadas na cidade. Em uma comunidade, ao tentar entregar material de campanha para uma senhora, ela disse: – não precisa perder tempo em falar comigo não, pois não sei ler, nem tenho título para votar. A expressão dessa senhora manifestava um sentimento de inferioridade, como se ela fosse muito menos importante que as demais pessoas. São as marcas de uma violência simbólica, que diminua o outro, o pobre.
Destacamos aqui apenas alguns relatos, que não se configuram, de forma alguma, como meras exceções. Ao contrário disso, são verdadeiros exemplos, que revelam um cotidiano submerso de vulnerabilidade extrema. É urgente que essa Piracicaba profunda venha a emergir das sombras que está relegada, suplantando todos os ardis ideológicos que visam mantê-la na total invisibilidade, passando a ser reconhecida e debatida por todos. As faces de uma Piracicaba profunda remetem à perspectiva do direito, da justiça e da cidadania. A democracia não pode ser reduzida a um mero conceito abstrato. Democracia contempla intensa participação política e o efetivo reconhecimento de que todos são cidadãos, plenos em dignidade humana, tendo os direitos humanos garantidos pelos poderes públicos em interlocução com o conjunto da sociedade.
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Adelino Francisco de Oliveira, professor no Instituto Federal, campus Piracicaba, Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências da Religião ([email protected])