Emergindo fantasmas na Rua do Porto

Fernando Monteiro Camargo

 

Próximo à região central da cidade de Piracicaba/SP, situada à margem esquerda do rio, a Rua do Porto, é consagrada como um corredor de turismo, lazer e como local de rememoração histórica que ultrapassa o tombamento dos edifícios nela situados, alcançando situações que constituem o imaginário daqueles que vivem e falam sobre seu passado.

Essa rua é uma marca na cidade, pois constitui-se como uma espécie de baú de memórias que desperta inúmeras lembranças individuais e coletivas, afetivas e políticas, para seus moradores e visitantes. Ela é palco de relações e formas de sociabilidade que se transfiguram com a passagem do tempo e atuam na transformação do espaço. Ora ela é ocupada por aposentados jogando dominó, ora serve de palco para apresentações e exposições artísticas; algumas vezes vira trajeto de procissão, outras vezes é local de confraternização; também é lugar de turismo gastronômico ou, então, local de passagem para chegar à pista de skate. É ponto de encontro de jovens e local de admiração das águas do rio Piracicaba e de edifícios antigos reconhecidos como patrimônios históricos da cidade. Já abrigou, olarias, uma indústria de tecidos e fabriquetas de pamonha. Foi local de prostituição e de crimes que marcaram a cidade. Também foi local de disputas de projetos urbanísticos e suas interpretações do lugar. Mas, existe um personagem ali que se esgueira em suas margens — o pescador. E é preciso prestar atenção nele. A partir dele que quero falar sobre as fantasmagorias que (re)existem e disputam o passado, o presente e, consequentemente, o futuro das cidades.

É o pescador que habita os barrancos do rio Piracicaba. São figuras fantasmagóricas porque tensionam diferentes temporalidades que habitam esse espaço. Serão eles imagens sobreviventes como diria o filósofo e historiador da École de Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, Georges Didi-Huberman? Serão eles formas de existências que produzem resistências em um mundo danificado? Apesar do pescador ganhar cores e formas diferentes nas várias temporalidades da experiência da relação da rua com o rio, sua imagem corre o risco de ser soterrada nos barrancos do rio Piracicaba. Com isso, quero dizer que, mais do que falar sobre como as políticas públicas podem tornar a Rua do Porto ou o rio Piracicaba cada vez mais útil para a cidade, é necessário prestar atenção nas diferentes vidas que compõem esse espaço.

As margens do rio Piracicaba foram ocupadas por colônias de pescadores. Em 1950, essas margens eram conhecidas por serem a segunda maior colônia de pescadores do estado de São Paulo. Em razão disso, restaurantes se instalaram ali e comercializavam os peixes, capturados pelos pescadores no rio Piracicaba, assados em latões de ferro. Mas, há muito tempo os peixes, que são comercializados nos restaurantes, não são mais pescados ali. Muitos deles são pescados em outros estados. Sua pesca deixou de ser artesanal e passou a operar em uma lógica de produção industrial. Já não se vê mais o pescador dos barrancos do rio Piracicaba no olho do peixe. O peixe é pescado, limpo, embalado, congelado em processos de relações exploratórias que vão desfigurando sua imagem no rio.

Em uma segunda-feira, estaciono na Rua do Porto, às 6h30min da manhã e, de dentro de meu carro, observo o movimento de pessoas que caminham por ali. Desço do carro para observar mais de perto e encontro os barrancos do rio Piracicaba preenchidos por pescadores. De cima da ponte estaiada, consigo enxergar ao menos cem pessoas nos barrancos do rio. A movimentação dos pescadores na Rua do Porto é diversificada. Deparei-me com motivações diversas para estarem ali: velhos, adultos, jovens e crianças. Alguns são moradores da Rua do Porto, outros de bairros mais distantes ou de cidades vizinhas. Há aqueles que formam o circuito da modalidade esportiva de pesca de barranco. Têm o aposentado, como Seu Antônio, que vende o peixe para complementar sua renda. Os que pescam e levam para casa para comer, como Seu José. Os que nunca pescaram na vida e “brincam de pescar”, como Luís e Mariano. Mas o que mais me chamou atenção foi João, um morador de rua, que contrariando aqueles que dizem que é preciso “ensinar a pescar e não dar o peixe”, pede dinheiro no semáforo para comprar uma vara de bambu e pescar seu alimento e cozinhá-lo, ali mesmo, na beira do rio. João é jovem, tem apenas 28 anos, veio para Piracicaba para tentar um emprego na construção civil. Agora, está na rua por falta de oportunidade.

Mas, de que forma seu corpo está marcado pelas diversas relações que atravessam as políticas públicas para a região da Rua do Porto? Os pescadores, “fantasmas” que, para os não pescadores, habitam um passado da rua e alimentam o imaginário de se comer peixe fresco na beira do rio, corporificam-se como parte dos barrancos, tornando-os barrancos. São sobreviventes de processos de soterramento de sua imagem. Para que a Rua do Porto continue como local de rememoração histórica, mais do que elaborar políticas para torná-la cada vez mais útil para a cidade, é preciso fazer emergir seus fantasmas. Se permitir aprender com as diferentes formas de existências que produzem resistências em um mundo tão danificado. Como nos ensina, Ailton Krenak em seu livro “Vida não é Útil”, publicado pela Companhia das Letras em 2020, “nós temos que ter coragem de ser radicalmente vivos, e não ficar barganhando a sobrevivência”.

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Fernando Monteiro Camargo, antropólogo, doutorando em Ciências Sociais da Unicamp, membro do Visurb – Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas e do Labirinto; e-mail: [email protected].

 

 

 

 

 

 

 

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