Fernando Monteiro Camargo
Em 2016, logo que me mudei para o apartamento que comprei com financiamento da Caixa Econômica Federal na cidade de Piracicaba, localizada no interior do Estado de São Paulo, numa segunda-feira, por volta das 7h da manhã, recebi uma mensagem no grupo de Whatsapp do condomínio de um morador que reclamava de um cheiro forte que vinha do ralo do banheiro de seu apartamento. Outros moradores também se manifestaram sobre o cheiro do ralo de suas casas e, na troca de mensagens, especulavam sobre o motivo do mau cheiro.
Agora, em 2020, durante uma forte chuva que atingiu a cidade de Piracicaba, uma vizinha de minha mãe me chamou ao portão de sua casa para perguntar se tinha voltado esgoto no ralo da casa da minha mãe. Aparentemente, em sua casa isso tinha acontecido, pois o cheiro do ralo de sua casa estava insuportável. Respondi que sim, e ela contou que outros moradores da rua também haviam reclamado do mau cheiro que vinha do ralo de suas casas.
Muitas coisas aconteceram de 2016 para 2020. O golpe de Estado, que destituiu a presidente Dilma Rousseff e colocou Michel Temer no poder, inaugurou o processo de destruição do País, intensificado, em 2018, com a eleição do facista Jair Bolsonaro (atualmente sem partido) como presidente do Brasil. O ano de 2018 também foi marcado pelo assassinato da então vereadora Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista Anderson Gomes, caso este até hoje não solucionado. Apesar disso, existem diversas evidências que apontam para o envolvimento de milicianos ligados à família de Jair Bolsonaro na morte de Marielle e Anderson.
Tal como em 2016, 2020 é um ano de eleições municipais. Em 2016, Barjas Negri (PSDB) ganhou a eleição para a prefeitura de Piracicaba/SP no primeiro turno e isso foi bastante comemorado no grupo de Whatsapp do condomínio em que moro. Agora em 2020, apesar da candidatura impugnada em segunda instância pelo Tribunal Regional Eleitoral, Barjas Negri tenta a reeleição. A disputa, dessa vez, foi para o segundo turno com Luciano Almeida (DEM), que tem como vice Gabriel Ferrato (ex-secretário municipal da gestão Barjas Negri (2008-2011) e ex-prefeito pelo PSDB (2012-2015). As propostas de governo dos dois candidatos são bastante parecidas e seus partidos, tanto em nível municipal, estadual quanto nacional, são aliados históricos em ataques contra os serviços públicos e os direitos sociais. Cabe lembrar que PSDB e DEM atuaram no golpe de 2016 e diversos políticos ligados a esses partidos acabaram contribuindo com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, como é o caso de João Dória (PSDB), que utilizou o slogan Bolsodoria para conquistar o Governo do Estado de São Paulo e do Ronaldo Caiado (DEM), defensor de Bolsonaro e governador do Estado de Goiás.
Voltando ao cheiro do ralo, é revelador como esse mau cheiro se manifesta em períodos de eleições municipais. Moradores de bairros de classe média de Piracicaba se incomodam com o mau cheiro do ralo de suas casas, enquanto, em outras localidades da cidade, muitas pessoas convivem com o cheiro insuportável de esgoto nos quintais de suas casas. Diferentemente das casas dos moradores de classe média, que sentem o cheiro do seu próprio esgoto vindo do ralo, nas favelas da cidade o mau cheiro é fruto de um projeto político que governa a cidade de Piracicaba há pelo menos 16 anos – projeto este representado tanto por Barjas Negri (PSDB) quanto por Luciano Almeida (DEM).
Cabe lembrar que a atual gestão se orgulha em dizer que Piracicaba possui 100% de seu esgoto tratado, no entanto, existe uma porcentagem do esgoto da cidade que não é sequer coletado. Apesar disso, nesse texto, o mau cheiro não se refere exclusivamente à questão de saneamento básico, o que já seria por si só grave. Mas se manifesta como um vestígio que perturba uma classe privilegiada pela necropolítica estatal.
O cheiro do ralo é também o nome de um longa-metragem produzido em 2007, baseado no romance homônimo de Lourenço Mutarelli, com direção de Heitor Dhalia. No filme, o personagem principal, Lourenço, protagonizado por Selton Mello, possui uma loja que compra objetos usados de pessoas que passam por dificuldades financeiras. Lourenço quer resolver o mau cheiro que vem do ralo de seu banheiro. No filme, o personagem reflete: “De tanto inalar merda, meu cérebro se confundiu. Eu preciso quebrar o banheirinho. É a porra do cheiro. É isso que tá me deixando cansado. A culpa toda é do cheiro do ralo. Amanhã vou cimentar”. Mas, um cliente, vendedor de violino faz questão de lembrar que o cheiro que vem do ralo é do próprio Lourenço. Conforme diálogo abaixo:
Vendedor de violino: Isso daqui cheira a merda!
Lourenço: É do ralo ali.
Vendedor de violino: Não é não.
Lourenço: É!! O cheiro vem do ralo ali.
Vendedor de violino: O cheiro vem de você!
Lourenço: Não amigo, é que tô com um problema aqui no banheirinho aqui, oh, o ralo aqui!
Vendedor de violino: E quem usa esse banheiro?
Lourenço: Eu.
Vendedor de violino: Quem mais?
Lourenço: Só eu.
Vendedor de violino: Então… De onde vem o cheiro?!
Por fim, como bem lembrou um querido amigo, cabe saber se há como resolver o problema do cheiro do ralo ou se é da condição da classe média a produção assídua de merda.
_______
Fernando Monteiro Camargo, antropólogo, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unicamp, membro do Visurb – Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas e do Labirinto – Laboratório de Estudos Socioantropológicos Sobre Tecnologias da Vida; e-mail: [email protected]