Cidadão Cadastrado

José Renato Nalini

 

A era digital, subproduto da Quarta Revolução Industrial, propicia um controle mais efetivo sobre a população. Sonho de tantos defensores de utópica segurança, as informações passíveis de obtenção pelas tecnologias já disponíveis não têm limite.

Nessa linha, o Cadastro Base do Cidadão oferece perspectivas instigantes. O núcleo integrador começará com o CPF, nome, data de nascimento, sexo e filiação. Em seguida virá a base temática, a partir de dados biométricos.

O aspecto favorável é a implementação do “Govtech”, o ideal de um Estado que facilite a vida de seus súditos. Por que não aproveitar a oportunidade e transformar as eleições em operação inteiramente virtual? Se já possuímos 265 milhões de mobiles, se é tecnologicamente possível identificar a origem das chamadas, o custo-benefício de uma adoção pioneira em todo o mundo é um convite àqueles que querem facilitar a vida das pessoas.

A logística para uma eleição convencional é dispendiosa, demorada e aborrecida para quem se vê recrutado a trabalhar de graça para o Governo. Justifica-se, em pleno século 21, que uma pessoa com título de eleitor num município, estando momentaneamente em outro, não possa exercer o seu direito/dever do sufrágio?

O Cadastro Base do Cidadão sugere oportunidades de reduzir, substancialmente, a burocracia. Este monstro que torna aflitiva a existência do brasileiro e que tem sido uma das principais causas da fuga de capital externo, urgência sem a qual não se vislumbra futuro digno para os milhões de desempregados, além de outros que voltaram à faixa da pobreza.

A vantagem dessa medida é a interoperabilidade, palavra que começou há alguns anos a habitar o discurso dos preocupados com a ineficiência estatal. Na Quarta Revolução Industrial, não se justifica a compartimentação de dados por inúmeros órgãos. Um retrabalho custoso, que leva minguados recursos do povo para a manutenção de estruturas arcaicas, anacrônicas, ineficientes e sempre sob suspeita de práticas não republicanas.

O compartilhamento de dados será possível em três níveis: um amplo, disponível a todos. Um restrito, com algumas limitações. O terceiro, específico, ainda mais restrito.

É óbvio que existe a preocupação de que a privacidade seja atingida, principalmente agora em que se “namora” a LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados.

Tenho verificado que a solução do constituinte de 1988 ao criar infinitos direitos, acolhendo no âmbito do artigo 5º da Constituição Cidadã valores antagônicos, um dia enfrentaria turbulências. É o que ocorre no confronto privacidade/intimidade e publicidade/transparência.

Outra série de confrontos reside no cotejo liberdade/ordem e segurança, propriedade e função social, além de tantos embates que o Judiciário – resposta para todos os anseios e postulações – já tem feito incidir o que o juiz – cada juiz, em seu âmbito jurisdicional – entende que deva ser a vontade concreta da lei.

Essa “luta” entre privacidade e transparência está mostrando que esta leva a melhor. É um preceito republicano. Sem ela, as práticas mais nefastas enfrentadas pelo Brasil dos últimos anos continuaria não só possível, como provável.

Numa sociedade exibicionista, narcisista, ególatra, é de se espantar que haja tantos defensores ferrenhos de uma intimidade que é relegada por uma considerável faixa de brasileiros, quando propala suas preferências, seus hábitos e suas viagens por um disputado conjunto de redes sociais.

Enfim, a discussão apenas começou. Logo haverá tonelagens de pareceres, ensaios, doutrinas e livros, pois o mercado jurídico vive desses apaixonados antagonismos.

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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

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