Amor perfeito

Camilo Irineu Quartarollo

 

Quando vai voltar? Continue lendo seu livro, já volto. Quando? Logo, no último capítulo já estarei de volta. Estou no fim, hein.

Então, depois que a porta bateu veio uma chuva tormentosa, as cortinas mexiam-se nas asas de um vento ansioso, uma chuva que não chovia, era o medo, a ausência pérfida de uma alma mal arrumada e de um livro aberto.

Choveu a noite toda, na madrugada ainda pingavam letras miúdas. Fora, o vitrô embaçado, aquela história não acabaria bem. Parei, olhei e pari uma ideia. Se fosse um conto de fadas… mas era de um amor inusitado, indefeso, ia acabar numa noite! O amor válido é o prolongado, não o abortado no meio, ler é sofrimento, mas é imperioso continuar, além dos despistes da trama.

Com um livro assim a gente fica tentado a ir direto ao fim e quebra a mágica. Mas quando ela volta? Ela já leu todo o livro antes de mim nesta obra que nos une e me deixou esse que não é o Neruda, não posso devolvê-lo sem ler. O relógio bateu horas e uma coruja cantou fora, mas tem folhas pela frente, vou ler, ô se vou, mas agora…

Pausa, ufa! Uma mensagem no whatsapp. Deixei o livro e fui ao celular. Já acabou? Leu o último capítulo? Nossa, estava odiando ler, o título era: Como encontrar o amor perfeito. Prossegui só pensando a sós, deixei de lado a leitura. Amor perfeito? Ora, não estava procurando nada disso, mas comecei a pensar nos casais que conheço, amores perfeitos, alegres, bem vestidos, sapatos caros, dentes bonitos, jantares à luz de velas, bons perfumes e o vinho inebriador que conduz à cena do quarto. Amor perfeito não existe, mas existem suspeitos. Aliás, os outros são mais felizes, nós não temos esses acessórios todos. Pobre amor!

Encontros a pé, se acotovelar em ônibus, passear pelo Engenho e Rua do Porto, descer correndo para não perder o evento gratuito, voltar a pé ao lado de quem deambula com um mundo de sonhos, de um amor de requinte, talvez somente requentado de velho filme enlatado, de belos beijos falsos. Pobre amor. Ainda resta o vale-tudo na arte do encontro, mesmo a pé, dos amores que não passam na TV.

Interrompi a divagação. Ela chegou. Leu o último capítulo? E tem? Todos os livros têm. Esse não tem, ara!

Quando sair verei o lugar onde o peixe para, o lugar, mas o peixe já se foi no revérbero do burburinho. Insuportável perfeição! O amor está em eterna suspeição, em contínua mutação, em eterna fascinação, no ato criativo do mundo imperfeito, mas que belo!

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor independente, autor de A ressurreição de Abayomi dentre outros

 

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