Democracia, representação e partidos políticos

A democracia plena e direta – no sentido mais amplo e genérico do termo, ou seja, aquela em que absolutamente todos os seres humanos, de todas as idades e condições, participem igualmente do governo de uma sociedade – é de si impossível. Nem nas primitivas democracias da Antiguidade, nem no moderno sistema do sufrágio universal, ela pode se realizar.

Primitivamente, eram os cidadãos, chefes de família que se reuniam e tomavam conjuntamente as decisões. Entendia-se que cada família era representada por seu chefe, e que o conjunto dos chefes de família representava devidamente a polis, a comunidade política ou cidade. Já aqui entra, note-se, a noção de representação: ou seja, uma vez que seria materialmente impossível todas as pessoas se reunirem para adotarem as decisões de interesse geral, entendia-se que elas deviam ser representadas. O critério de representação era natural: sendo a sociedade composta de famílias, e sendo as famílias dirigidas pelos respectivos chefes, uma reunião desses chefes representaria a sociedade no seu conjunto.

A representação é indispensável, e como tal é condição, para o exercício da democracia, mas é também uma limitação do sistema democrático. O regime democrático atingiria o auge do democratismo se aumentasse ao máximo o grau de participação direta dos cidadãos no exercício do poder, e reduzisse ao mínimo o grau de representação.

Modernamente, as democracias ficaram muito mais representativas e muito menos diretas do que na Antiguidade. Atualmente, parte-se do pressuposto, sem dúvida um tanto convencional, de que o eleitorado (ou seja, o conjunto dos habilitados a votar) representa o povo (incluídos nesta designação todos aqueles que não votam, as crianças, os velhos, os doentes, os silvícolas, os ausentes); esse eleitorado escolhe seus representantes, os quais, em nome do povo, governarão. Os atos governativos propriamente ditos serão praticados por um reduzidíssimo número de pessoas designadas, em nome do povo, pelo eleitorado; e a participação democrática dos eleitores, no exercício do poder, limita-se única e exclusivamente a depositar, de tempos em tempos, um voto numa urna.

Historicamente, pois, a democracia mais plena e direta que se pôde realizar foram aquelas primitivas, nas quais atuava um forte fator unitivo. Tratava-se de sociedades pequenas, em que todos, em linhas gerais, visavam os mesmos objetivos e tinham os mesmos interesses, constituindo por assim dizer um só todo moral. As divergências eram mínimas, e diziam respeito não às grandes metas da comunidade, mas, quando muito, aos meios a serem empregados em ordem a atingir as metas sobre as quais havia consenso geral. Numa sociedade assim, estava muito presente o fator unitivo, sendo perfeitamente praticável uma república. O firme consenso do conjunto da opinião pública fazia as vezes do monarca.

Evidentemente, quanto maiores se tornam as sociedades e, em consequência, maior o índice de representação, mais difícil de atingir é essa unanimidade moral, mais divergentes se tornam os interesses, maiores os conflitos. Não se trata aqui, exclusivamente, de interesses materiais, de ordem econômica – pois seria errado ver a História toda girar em torno de interesses econômicos, erro em que incide o marxismo. Mas trata-se também uma série de diversidades de ordem política, cultural, regionalística, psicológica, artística etc. que levam os membros da sociedade a verem com olhos diferentes os vários problemas e a proporem soluções diferentes para eles. Formam-se, assim, partidos, cuja tendência é se digladiarem entre si, querendo cada qual adquirir o predomínio sobre os outros, a fim de impor seu programa.

A formação de partidos não é um mal em si. Pelo contrário, pode ser um poderoso fator de enriquecimento da vida cultural, social e política de uma sociedade, desde que – note-se – sobrepaire a eles um fator unitivo suficiente para contrabalançar as forças centrífugas. Nas monarquias, esse fator é habitualmente representado pelo soberano, elemento aglutinador de todas as forças sociais.

Exemplo disso tivemos no Brasil após a Independência: não fosse a presença entre nós de D. Pedro I, que assegurou a continuação da monarquia lusa no Novo Mundo, forçosamente teria prevalecido aqui, como prevaleceu na América espanhola, a força centrífuga, e ter-nos-íamos fragmentado em pequenas repúblicas.

Outro exemplo foi o da monarquia áustro-húngara. Num imenso território habitado por pessoas de 15 nacionalidades ou etnias diferentes, em que tantos idiomas eram falados que se precisava usar o latim, língua universal, em muitos documentos oficiais – a única força aglutinadora era a dinastia, era a Casa d’Áustria. Proclamada a república em 1918, sem uma ditadura muito antinatural jamais se poderia assegurar a unidade daquele conjunto.

Na Rússia antiga, o Czar era indiscutivelmente esse elemento de união. Com o advento do comunismo, em 1917, somente uma tirania como nenhuma outra houve na História pôde manter unidas as peças desse imenso puzzle que se chamava URSS. Tal a força centrífuga de tais peças, porém, que foi só se afrouxarem um pouco as correntes que as prendiam umas às outras, e foi a uma imensa desagregação que assistimos.

O mal dos partidos em repúblicas está, repita-se, em se digladiarem sem que um fator unitivo superior resguarde suficientemente o bem comum contra o avanço dos interesses privados e de grupos.

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ArmandoAlexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

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