O que eu faria se morasse no Olimpo e me chamasse Apolo?

Armando Alexandre dos Santos

 

A palavra inveja provém do latim invidia, derivada do verbo invideo (invidere, no infinitivo), que significa “ver ao contrário”, “ver de má vontade”, “ver de modo mau” ou, mais livremente, “ver de maus olhos”, projetando sobre o outro um olhar malicioso que distorce a realidade. Denomina-se inveja aquele sentimento malévolo de tristeza pelo bem alheio, sentimento esse que atormenta e mortifica o invejoso, levando-o a ações censuráveis para privar o possuidor de seu bem.

Não apenas etimologicamente a inveja tem origem na visão, mas também fisicamente ela nasce do ato de ver outra pessoa e comparar-se com ela. A relação direta entre o ato de ver e a distorção visual que a inveja produz inspirou, a Santo Agostinho, um conhecido jogo de palavras: “Video, sed non invideo” – Vejo, mas não invejo. Daí haver, universalmente e quase antropologicamente, a tendência a identificar a inveja com o mau-olhado. No Brasil, tradicionalmente se usam as expressões olho-gordo, ou, mais popularmente, olho de seca-pimenteira.

Já na literatura grega clássica há referências ao mau-olhado. Elas são recorrentes na obra de Ésquilo (525-456 a.C.) e também Plutarco (45-125 d.C.) se referiu ao bom e mau-olhado, quando escreveu, nas suas Obras Morais, que os seres humanos se influenciam uns aos outros por emanações e que, “com toda a probabilidade, a mais ativa dessas emanações transmite-se através do olho, com muita força”.

Nem sempre o invejoso age de modo aberto e agressivo contra a pessoa invejada. Muitas vezes, prefere utilizar meios mais sutis.

O primeiro deles é o silêncio. A campanha de silêncio, movida por invejosos e medíocres contra pessoas de gênio, é – sem hipérbole nem exagero – gritante e até escandalosa. Às vezes, quando o silêncio se torna insustentável e a superioridade do invejado se torna por demais notória, o invejoso se vê a contragosto obrigado a engrossar o coro dos elogiadores, mas procura fazê-lo de modo hipócrita, elogiando algum aspecto circunstancial e acessório e mantendo silêncio sobre o essencial, sobre aquilo que realmente importa. Ou então chega ao extremo de fazer, ao invejado, um elogio tão exageradamente desproporcionado que até o constrange. Por que o faz? Para expô-lo ainda mais à inveja.

A difamação é o passo seguinte. Alguma coisa defeituosa, alguma falha, alguma falta do passado da pessoa invejada logo é propalada pelo invejoso, aos quatro ventos, na tentativa de apagar, cobrindo-o de lama, o brilho do invejado. Se faltas reais de monta não existem, é para a calúnia que o invejoso recorre, sem pejo nem escrúpulos; tudo lhe parece adequado e se justifica por si mesmo, desde que satisfaça a sua paixão criminosa.

A tal paroxismo atinge essa paixão que o invejoso por vezes chega a voluntariamente infligir graves danos a si próprio, tão-somente para ter o gostinho de ferir seu antagonista.

Uma fábula de Esopo, da primeira metade do século VI a.C., foi bem ilustrativa a esse respeito. Dois homens rivais, um avarento e um invejoso, rezavam a Júpiter, cada qual pedindo o que mais lhe apetecia. Júpiter, então, mandou-lhes Apolo, com o recado de que atenderia ao que os dois pedissem para si próprios, mas com a condição de que o outro receberia a mesma coisa em dobro. O avarento pediu, então, uma quantidade imensa de riquezas e imediatamente a recebeu. O dobro foi, também, entregue ao invejoso. Cabia a este formular o seu pedido; não quis pedir mais riquezas, porque se as pedisse o outro homem receberia em dobro. Que fez então? Pediu que o deus lhe arrancasse um olho… para que seu companheiro recebesse o dobro e, assim, ficasse inteiramente cego.

Se eu fosse Apolo, sabem o que faria? Eu arrancaria um olho do invejoso e lhe diria: – Ficas agora com um olho e teu companheiro fica com os dois; já realizei teu desejo…

Também outra fábula esopiana – intitulada “As abelhas e Zeus” – ilustrou bem o castigo que se autoinfligem os invejosos: as abelhas, que não desejavam compartilhar o mel com os homens, rogaram a Zeus que lhes desse um ferrão, para poderem atacar os homens que se aproximassem de suas colmeias. Zeus atendeu ao pedido das abelhas, mas castigou-as, condenando-as a perder a vida, juntamente com o ferrão, sempre que picassem alguém. O ensinamento moral formulado no final da fábula é bem explícito: aplica-se aos homens que consentem, por inveja, em se prejudicar a si mesmos para fazer mal àqueles que malquerem.

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Mudemos agora de assunto. Pedi, no último artigo, que os leitores se manifestassem sobre a inocência ou a culpabilidade de Capitu. Fui abrir agora a caixa de mensagens acumuladas. Tenho 14 “votos”: 4 julgam Capitu culpada; 3 a julgam inocente; 4 não têm certeza, mas acham Capitu mais provavelmente inocente; 1 não tem certeza, mas acha Capitu mais provavelmente culpada; 2 não opinam.

Esses poucos votos não permitem que se conclua validamente nada, em termos estatísticos, mas são mais do que suficientes, como amostragem, para confirmar o que já sabíamos: a questão continua (e provavelmente sempre continuará) aberta.

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

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