Mrs. Santiago:guiltyornotguilty?

Uma questão aberta da nossa literatura, que sempre apaixona e divide as opiniões, é saber se a respeitável senhora dona Benta Capitulina Santiago (mais conhecida como Capitu), era culpada ou inocente, do crime de traição que lhe imputa seu marido Dr. Bento Santiago, que passou para a celebridade como Bentinho, o casmurro.

Como todos sabem, o genial livro “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, publicado em 1899, descreve, sempre em primeira pessoa e tendo como narrador único o personagem Bentinho, seus amores e desamores, suas venturas, aventuras e desventuras, com Capitu, a menina pela qual se apaixonou ainda em criança e que mais tarde se tornaria sua esposa. Sempre vendo nela a sinuosidade de atitudes – simbolizada e acentuada pelos seus misteriosos e indevassáveis “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”- Bentinho se convence de que a esposa o trai com um vizinho. Não apenas se convence, mas também tenta, empenhadamente, convencer disso o leitor.

A narrativa flui sempre de modo agradável, mas o leitor é submetido, pela arte literária do “Bruxo da Cosme Velho”, a um verdadeiro bombardeio de impressões contraditórias. A todo momento ele se convence de que Bentinho tem razão e realmente a esposa o trai, para poucas linhas adiante convencer-se do contrário, ou seja, de que Bentinho é um paranoico ou paranoidal e sua pobre esposa é apenas vítima inocente das desconfianças doentias de seu atormentado e hiperciumentomarido. As impressões contraditórias se sucedem ao longo de todo o texto, de tal forma que, finda a leitura, o leitor muitas vezes fica sem saber o que julgar do caso.

O julgamento de Capitu é clássico, em cursos de Ensino Médio, quando as classes se dividem apaixonadamente. Também em cursos superiores de Letras e de Direito é costume se proceder, em salas de aula, ao julgamento simulado da pobre Capitu, e do seu traído (se-lo-á?) marido. Geralmente acaba empatado, metade condenando, metade absolvendo… O que mostra que o romance, se realmente teve como meta deixar em suspenso o verdadeiro juízo do seu autor, foi extraordinariamente bem sucedido.

À primeira vista, o empate seria fácil de explicar, se as mulheres votassem a favor de Capitu e contra Bentinho e os homens votassem “vice-versa ao contrário”, como dizia um amigo meu… Mas não é assim. Na verdade, tanto homens quanto mulheres se dividem meio a meio: mais ou menos 50% dos homens e 50% da mulheres de um lado, o restante do outro lado. Não se trata, pois, de uma votação influenciada pelo sexo, mas por características psicológicas individuais mais profundas, que independem do gênero de cada votante. Já vi homens defensores ferrenhos da inocência de Capitu e mulheres ardorosas acusadoras do procedimento dela. E também já vi homens ou mulheres mudarem de opinião acerca da culpabilidade ou inocência de Capitu, depois de relerem o livro. Um exemplo notório: Lygia Fagundes Teles, da Academia Brasileira de Letras, quando jovem chegou a publicar um artigo demonstrando cabalmente, com sua dupla autoridade de literata e advogada, que Capitu era culpada; em 2009, porém, releu o livro e declarou formalmente estar convencida de que a heroína machadiana fora mal interpretada, até por ela mesma, e era inocente. Entender, quem há-de?

Tenho um sobrinho que completou com 29 anos o doutorado na Escola Politécnica da USP, na área de Engenharia Química. É, portanto, inteiramente da área de Ciências Exatas, não é nem um pouco da área de Humanas. Recordo que quando ele, ainda adolescente, cursava o Ensino Médio, em sua sala de aula fizeram o julgamento de Capitu. E meu sobrinho fez um comentário que me pareceu muito pertinente. Ele observou que Bentinho era bacharel em Direito. Como bom advogado, ele fez… o que fazem todos os advogados! Ou seja, contou o caso inteirinho, desde o começo até o fim, com todos os pormenoresencaixadinhos na tese que queria demonstrar, a de que Capitu realmente o traía. Essa observação, claro, não basta para inocentar Capitu num julgamento, mas permite que se afirme uma coisa muito verdadeira: não é possível julgar Capitu somente com o depoimento de Bentinho, constante do livro Dom Casmurro. “Audieturet altera pars” (seja ouvida também a outra parte), reza o velho dito jurídico.

Capitu somente seria passível de julgamento se houvesse um outro livro com a versão contrária, ou seja, a dela, escrito não por um escrevinhador qualquer, mas por um literato do talento de um Machado de Assis. Poderia seguir o mesmo esquema do Dom Casmurro, mas expondo o outro lado da questão.A meu ver, um dos grandes pecados do velho Machado foi não ter escrito esse segundo livro. Gracejos à parte, o simples fato de a questão continuar inconclusa e aberta a novas interpretações prova como o romance foi bem urdido e como foi bem sucedido no intuito de deixar obscuro o pensamento secreto do seu autor.É sem dúvida, um grandíssimo escritor! Páreo para ele, na literatura brasileira, talvez só Guimarães Rosa…

Há cerca de 20 anos, a Dra. Ada Pellegrini Grinover, professora de Processo Civil da USP, publicou na “Revista Brasileira”, da Academia Brasileira de Letras, um conto maravilhoso, acrescentando um capítulo novo ao célebre livro “O Médico e o Monstro” (Dr. Jekyll e Mr. Hyde), de Robert Louis Stevenson, modificando inteiramente o final do livro. Achei um prodígio de imaginação e criatividade.

É pena que a Dra. Ada tenha falecido em 2017 sem ter usado sua prodigiosa imaginação e talento para defender Capitu. Seria uma grande advogada de formação, com pleno domínio da bela e injustiçada arte da retórica, e além do mais grande escritora, tornando um pouco mais equitativo o julgamento de Capitu.

Será que se esse livro fosse escrito se alteraria o placard habitual dos mais ou menos 50 % de cada lado? Sou levado a achar que continuaria mais ou menos o mesmo…E você que me lê? Já tomou posição? Escreva-me para [email protected]

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

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