Carta jazzística ao professor Celso Rocha

Caríssimo Professor Celso Rocha.

Hoje é domingo e – enquanto lhe escrevo – deixo tocar na vitrola, como deve ser, um disco de Chet Baker. O disco sopra o som leve de um trompete macio e sedoso que antecipa uma voz de potência duvidosa, mas perfeita para o que se quer. O bolachão roda e a nave preta gira uma energia sonora que enche o meu escritório desalinhado, desarrumado, de uma atmosfera que é pura harmonia cinza em tons menores. Chet canta, sola, improvisa, demove. E é domingo. E eu lhe escrevo sob a influência do grave encaixotado de um LP amarrotado, nostálgico, que comove e dói na alma sem a gente saber bem o porquê.

É domingo, professor Celso – dia daquela nostalgia de cortar os pulsos. Nunca lidei bem com os domingos, e acho que não sou o único. Mas é domingo. E a notícia de que o professor passou para outros planos – para o lado de lá da pauta, para o outro lado da arte literária do existir – chega a mim descansando o corpo ácido das letras na melodia cheia de nuvens do LP de Baker. Estranho. Num ano tão absurdo, num mundo tão desigual, num país que vai mal e que não deu certo e sucumbe dia a dia nas mãos dos novos fascistas de plantão, a notícia de sua partida contrasta a vida com a sonoridade triste do tema de My Funny Valentine. Que tempos estes – de orfandade fecunda – que vivemos, professor.

Não houve tempo para conversamos como queríamos sobre os discos do Grapelli. Sua visita ao também extinto Educativa nas Letras ficou agendada nos planos da memória. Não me lembro exatamente sobre o que conversamos quando, da última vez que nos vimos – ainda em frente à Rádio – mal sabíamos que seria nosso último papo, de tantos que tivemos. Mas me lembro, no entanto, de tantas outras conversas. Por aqui, Chet ainda toca seus temas e rega na minha memória as cenas mentais de momentos bacanas, das aulas do meu “tempo de eu menino” – no também já extinto curso de Letras da Unimep (como tudo o que é bom está morrendo, que coisa!) – quando pude (pudemos!) ter com você, caríssimo professor Celso, aulas e ensinamentos que agora se eternizam no nosso para-sempre de ex-alunos e ex-alunas.

Caro professor, preciso confessar. Havia entre nós – alunos e alunas de suas aulas de linguística – uma brincadeira que, creio, o professor desconhecia. Por conta dos seus exemplos sobre alteração sonora das vogais no interior paulista e na capital – quando o professor veementemente exemplifica o caso citando a pronúncia das palavras “bolu” e “leiti” – nós, carinhosamente, nos referíamos a esses mesmos exemplos quando fazíamos menção a suas aulas. “Hoje tem bolu e leiti” – brincávamos. Saudade desse tempo, professor. Saudade desse mundo. Saudade de quando achávamos que tudo ainda valia a pena e que poderíamos construir um novo país com mais “bolu” e “leiti” para todos.

Professor, agora que o disco de Chet chegou ao fim, me lembro também do dia da formatura de minha turma. Nessa noite de festa e celebração, pude tocar ao violino – na sessão solene – ao lado do também já saudoso professor Nabor Nunes Filhos, a canção “Luisa”, de Tom e Vinícius. Ao final da música, o professor, comovido, sentado à grande mesa dos homenageados, olhou para trás e me disse, paulistanamente como sempre dizia: “Pô, aí não dá! Não tem como não chorar”.

Querido professor Celso – mestre de tantos talentos, de tantos ensinamentos, de tanta música e de tanta cultura –, agora somos nós, seus amigos e amigas, seus alunos e alunas, que comovidos dizemos ao professor neste momento de sua partida: “pô, professor! Aí, não dá! Não tem como não chorar”.

Vá em paz, professor Celso Rocha. Um forte abraço dos que – neste mundo cada vez mais triste – por aqui ainda um pouco mais ficam. Seu legado de “Camjas,” de “Bolus”, de “Leitis” e de paixão pela música, pelas letras e pela educação soa fundo em nós, como o som do trompete de Baker – de quem, eu sei, o professor tanto gostava. Vá em paz – e muito obrigado.

Com toda estima de sempre.

Seu aluno, Alexandre.

 

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