Como Manolito ficou sabendo que era Paco

Armando Alexandre dos Santos

 

Manuel caminhava contente, por uma pedregosa estrada de Castilla-la-Vieja, região rural do antigo reino de Castela, bem no coração da Espanha atual.Saíra, havia pouco, de seu pueblito (aldeia), e dirigia-se a Zamora, cidade maior, para procurar o notário que faria o registro de um menino, do qual seria padrinho.

Os pais do menino eram seus conhecidos. De longa data. Deviam até ser meio primos, pois naquelas aldeolas todos os casamentos são realizados entre famílias conhecidas, em um inextricável novelo de parentescos e vinculações endogâmicas, de tal forma que todos são primos e primas.O pai do menino o convidara para apadrinhar o recém-nascido. Pedira-lhe que, quando fosse à cidade, informasse o nascimento ao tabelião, para o registro. Registros civis eram coisa nova, o governo mandava fazer, era preciso obedecer. Antigamente, nascia-se, vivia-se e morria-se sem essas burocracias, mas agora, sin los papelitos, nada mais se fazia.

Quando o futuro compadre lhe fez o convite e o pedido, Manuel perguntou que nome devia dar ao futuro afilhado. –Llámalo como tu– respondeu o pai, manifestando o desejo de que o menino tivesse o mesmo nome do padrinho.

Foi essa homenagem que alegrou a manhã de Manuel. Saiu, pois, cantarolando um velho villancico pela estrada rural que o conduzia à cidade maior. Era o primeiro afilhado que tinha, havia porque alegrar-se.Tão alegre estava, ao chegar à cidade, que resolveu alegrar-se ainda mais. Como diz a Bíblia, “o vinho alegra o coração do justo”, e o justo Manuel, desejoso de se alegrar, foi direto para a taberna. Lá, entre copos de saboroso vinho da terra, entremeados com tapas fritas e trocitos de morcilla, deixou-se ficar, sem pressa, até o meio da tarde.

Foi só quando o sol já declinava que, de repente, lembrou-se do afilhado e da obrigação que tinha de registrá-lo no cartório. E, bastante avinhado e excessivamente alegre, com passo não muito compassado e com rumo não muito arrumado dirigiu-se, como pôde, ao cartório.Lá chegando, como é de praxe, o tabelião, que também era amigo e vagamente aparentado, serviu-lhe mais um copo de vinho e, juntos, saborearam um queijo caseiro que todos gabavam como o melhor do mundo, acompanhado de um delicioso pão caseiro que, por coincidência, estava justamente saindo do forno. Naturalmente, a alegria ficou ainda maior…

Já estava escurecendo quando, afinal, Manuel contou ao tabelião por que viera visitá-lo. Era para registrar o filho do Pedro, sim, do amigo Pedro Gómez, o ferrador da aldeia. O menino nascera, o pai o convidara para padrinho, era ele que vinha fazer o registro.

Sin ningun problema-respondeu o tabelião. Por supuesto que haré el registro. Pero, que nombre pongo al niñito ese que nació?

Nombre?Hay que ponerle nombre, hombre?

Por supuesto, hay que ponerlo…

Y no puedes dejar eso para después?

Por supuesto que no puedo, hombre. Como puedo registrar a un niño sin nombre? Es impossible.El padre no te dijo como debía llamarse el hijo?

Então, no meio dos vapores etílicos que de todas as partes o envolviam, forçando bem a memória, Manuel tentou desesperadamente se lembrar do que lhe dissera o pai do morito (na Espanha, ainda como velha reminiscência das lutas da Reconquista, costuma-se chamar afetuosamente de “mourinhos” os recém-nascidos antes de batizados). E somente então se recordou das palavras do compadre: –Llámalo como tu.

E, resoluto, declarou ao tabelião:-Llámalo como tu.

Pues, así va bien. Va a tener un hermoso nombre el chiquitín ese.

E sapecou, no volumoso livro de registros, a informação de que viera ao mundo Francisco Gómez, filho de Pedro Gómez e Maria del Cármen Ríos, conforme declarações do padrinho Manuel Sánchez.

De posse da certidão, Manuel despediu-se do notário e retornou a sua aldeia. Pelo caminho, o ar fresco da noite, o aroma inconfundível das flores do campo e, sobretudo, o passar do tempo, foram exercendo em sua mente etilizada uma função clarificadora. Foi assim que, perfeitamente sóbrio, chegou a sua aldeia e entregou o papelito de registro ao pai, declarando que procedera conforme suas instruções. Eram ambos iletrados e não tinham como ler o que estava escrito no misterioso e prestigioso papelito, que ficou bem guardado, entre outros tesouros da família, na velha casa de pedras, que havia mais de 300 anos abrigava, do rigor do inverno e da inclemência dos verões, sucessivas gerações de robustos Gómez…Mais um copo de vinho, oferecido pelo compadre, encerrou a trabalhosa jornada do alegre padrinho.

O menino cresceu, fez-se homem. Foi sempre, em família, na aldeia e em todos os lugares, Manolito Gómez. O diminutivo Manolito era para distinguir do padrinho, conhecido como Manolo Sánchez.Foi só muitos e muitos anos depois, quando estava embarcando para o Brasil, terra de promissão que excitava a imaginação das sofridas populações rurais daquela Espanha ainda pouco desenvolvida, que Manolito soube… que não era Manolito. Ao apresentar, ao funcionário que devia fazer-lhe o passaporte, a certidão de nascimento, é que ficou sabendo que seu verdadeiro nome era Francisco.

Lá estava, bem claro e legível, o nome Francisco, sem a menor sombra de dúvidas. Como explicar o mistério? O pai e todos, na família, juravam que ele sempre fora Manuel e Manuel continuaria sendo, com ou sem papelito…Procurado o padrinho para esclarecer o caso, ele, muito embaraçado reafirmou que havia dito ao tabelião exatamente o que o pai mandara dizer.

E o tabelião, quando procurado, declarou que se lembrava muito bem daquele registro. O primo Manolo não se lembrava do nome do menino, mas depois de alguma hesitação, lhe dissera com toda a segurança: –Llámalo como tu.E ele, naturalmente obedeceu. Ainda elogiara a beleza do nome…

Foi assim que Manolito ficou sabendo, quase aos trinta anos de idade, que não era Manuel, era Francisco. Não era Manolito, era Paco…

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

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