À força do destino

A natureza humana é uma força incontrolável. Sei por experiência própria de réu confesso. Triste e própria. A força da natureza é aquela que vem de dentro da gente, é a que faz o destino pelo intestino. Ave! Nada é mais humana do que ela. Essa força terrena, telúrica e terrosa que nos assola é mais forte que tudo.  Abissal. Rápida. Mais rápida que o som – pois quando a força vem, não há tempo de se dizer palavra. Mais rápida que a luz, porque quando a força ruge não dá tempo nem de encontrar o interruptor do banheiro. A força da natureza, estranha-entranha, é dimensão maior das profundezas não filosóficas do humano – sem Nietzsche e sem manha.

O causo é meu e eu assumo. Oras. Fazer o quê. Nada que me é humano me é alheio. Ainda mais nesse meio. Era um mês de julho desses que já foram de férias e passeios – sem gritarias, sem pandemias e pandemônios. Eu zanzava em Paraty, para não perder o de costume. Naquele dia fatídico e fatal de total libertação, eu já havia tomado pela tarde um comprimidinho desses de por a gente a trabalhar de rei, no trono preguiçoso dos sem-glória. Meu intestino – já que esse é o tema – sempre me foi um problema. Como pela noite nada ainda havia produzido efeito, antes de zanzar pela cidade eu tomei outro – que era de jeito. E me coloquei por Paraty, a caminhar em espera e satisfeito.

Há um teatro em Paraty que é belíssimo. Pequeno. Estreito. Mas muito bonitinho. Confesso pelos deuses e deusas que eu não o conhecia – senão, claustrofóbico que sou, jamais ali entraria. Jamais. Mas, pago o ingresso – e dado o sucesso de peça estrondosa que ali se abancava – resisti e entrei. A peça era premiada. Prêmio Esso. E eu, ao saber o título dela, e ao me ver entrando naquele teatro sem porta de saída, me dei conta de que eu viveria ali um trecho infeliz da minha vida. A peça se chamava “O Náufrago”. Era um sinal. Um mau presságio. Uma anunciação. Eu já sabia.

O teatro em Paraty é tão pequeno que as cadeiras da plateia terminam dentro do palco. Literalmente. É como se o teatro fosse um balde, um penico (sim: outro presságio de mico). Uma vez dentro dele, só se sai passando pelo palco. Ou seja. Começada a peça, só se sai dela sem pressa. Para ajudar, escolhi o melhor lugar. Lá no alto. Em cima. E sem rima, agora, que a desgraça foi feita: quando o ator entrou fazendo seu náufrago, algo dentro de mim também naufragou. Vieram vagas sentidas em suor e lágrimas. Pensei em sair correndo, se houvesse tempo. Mas não havia saída. A saída era pela ribalta – o que interrompia a minha partida.

O povo ria do espetáculo e eu, curvo, aproveitava os risos para gemer fingido. O Náufrago, personagem, ia e vinha pelo palco – sem lei. E eu ia e vinha a dimensões que nem sei. Acho que devo ter feito por dentro – num processo mágico de defecação interna. Por fora, a roupa lavada apenas de suor. Com Deus. Pelas tantas, as pessoas ao lado começaram a perceber que havia algo errado. Em gentilezas, foi um me abanar dos diabos. Delirando, de olhos fechados, me vi deitado sobre os ombros de um homem que quem era não sei. E o povo me abanando, achando que era pressão alta ou baixa – pouco importa ou importava, pois naquele momento eu desafiava a força da natureza como um rei. Acabada a peça, desabalei em carreira entre o público. Esfíncter heroico vencendo o destino sem tino.

O vento da rua nunca me pareceu tão bom. O ar de Paraty. A maresia. A praia. A baía. Não haveria eu de tentar agora vencer a força da luz no espaço tempo para tentar chegar à pousada. Não. Nem pensei. Que as águas da orla de Paraty, singelas que belas, me guardam um segredo de vida – à força do destino e do intestino livres. Ai, liberdade! Alma voando pelos mares! Ali mesmo, no porto ancorado, naufraguei.

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