Dois testamentos históricos

Armando Alexandre dos Santos

 

Este artigo deverá ser publicado no próximo sábado, mas está sendo escrito hoje, 25 de agosto de 2020, no dia em que precisamente se completam 750 anos da morte de São Luís IX, Rei da França,e também se comemora o aniversário natalício do Duque de Caxias, nascido a 25 de agosto de 1803 e falecido há cerca de 140 anos, no dia 7 de maio de 1880.

No dia 25 de agosto se celebra a festa litúrgica do Rei São Luís e a festa cívica do Exército brasileiro, do qual Caxias é Patrono.

Ambos foram guerreiros ilustres e deixaram feliz memória. Embora o calendário litúrgico registre considerável número de monarcas santos, talvez nenhum deles tenha realizado de modo tão completo a imagem ideal de Rei cristão quanto São Luís IX. Herdou a coroa com 12 anos, assumindo a regência sua mãe D. Branca de Castela, dama de excepcionais virtudes. Dizia ela ao filho que preferia mil vezes vê-lo morto a vê-lo manchado por um pecado mortal. Fiel aos ensinamentos maternos, São Luís foi sempre homem de muita oração e piedade. Era modelo de governante, de guerreiro e de legislador. Considerava um dos principais deveres do monarca fazer justiça aos súditos, e por isso costumava sentar-se todos os dias à sombra de um carvalho, e ali atendia a todos os queixosos que se apresentassem, qualquer que fosse a condição social deles. Realizou duas Cruzadas para libertar a Terra Santa e outros territórios dominados pelos maometanos, e morreu durante a segunda delas, vitimado pela peste. Tão grande era seu prestígio moral que, tendo caído prisioneiro dos maometanos, estes o tomavam como juiz para resolver pendências que tinham entre si. As duas Cruzadas que organizou e comandou oneraram muito o reino e acarretaram aumento dos impostos na França, mas isso não abalou, nem um pouco, a imensa estima que lhe votava seu povo. Foi imensamente popular enquanto reinou, verdadeiramente sendo venerado pelo povo francês. Canonizado poucos anos após ter morrido, ainda hoje é celebrada sua memória. Um indício curioso dessa popularidade pode ser atestado ainda hoje no campo da numismática. De todas as moedas de reis medievais franceses, aquelas que são menos valorizadas são as de seu reinado. Por quê? Porque são muito numerosas, muito mais fáceis de serem encontradas do que as dos outros monarcas. Isso se explica facilmente: depois que morreu, muitas famílias guardaram as moedas com a efígie do bom e santo rei como lembrança, ou como relíquia, e ainda hoje existem muitas centenas delas em boas condições de conservação. Por isso valem tão pouco…

O Rei São Luís foi casado com Margarida da Provença, da qual teve onze filhos. Em 1864, o Príncipe Gastão de Orléans, Conde d’Eu, que trazia em suas veias o sangue de seu antepassado São Luís, casou com a Princesa Isabel, filha do Imperador D. Pedro II e herdeira do trono do Brasil. Em consequência desse casamento, a Família Imperial do Brasil tem a glória de descender, por linha direta, varonil e legítima, do grande rei cruzado.

Quanto ao Duque de Caxias, o grande patrono do Exército brasileiro, não é preciso me estender muito. Basta lembrar que consolidou a unidade territorial do Brasil no conturbado período da Regência, e foi chefe de armas vitorioso nas várias guerras que o Império precisou enfrentar no Sul, no Uruguai, na Argentina e, sobretudo, no Paraguai. Sua espada, conservada na Academia Militar de Agulhas Negras, é até hoje objeto de culto cívico e particular veneração pelos oficiais que, a cada ano, saem daquela Academia. Cada um deles conserva uma miniatura dessa espada tão carregada de simbolismo, como lembrança da formatura.

Por uma singular coincidência, nesta mesma semana me chegaram os testamentos dos dois grandes chefes militares: o do rei São Luís, ditado no seu leito de morte, na tenda de campanha que ocupava perto de Túnis, no norte da África, e o do Duque de Caxias. O primeiro, feito em forma de mensagem dirigida ao seu filho e herdeiro, futuro rei Filipe III, e reproduzido por Joinville nas suas Memórias, é traduzido por mim ;o segundo, foi em boa e regular forma de testamento, foi-me enviado hoje por um colega, membro do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil.

Como homenagem a essas duas ilustres figuras históricas, transcrevo a seguir, sem mais comentários, ambos os testamentos:

Conselhos que o rei São Luís IX, já moribundo, ditou para serem entregues a seu filho:

Beaufils, a primeira coisa que te recomendo é que apliques teu coração no amor de Deus; pois sem isso nada se pode salvar. Guarda-te de fazeres qualquer coisa que desagrade a Deus, ou seja, o pecado mortal; muito pelo contrário, deverias sofrer toda espécie de humilhações e tormentos antes que cometer um único pecado mortal. Se Deus te enviar adversidades, recebe-as com paciência, dá por elas graças a Nosso Senhor e considera que elas são merecidas e que te serão proveitosas. Se Ele te der a prosperidade, rende-Lhe humildemente graças, de tal forma que não sejas pior por orgulho ou por outra causa qualquer, quando deverias melhorar; pois não se deve usar contra Deus os dons que Ele próprio concede. Confessa-te com frequência e escolhe para confessor um varão prudente, que saiba ensinar-te o que deves fazer e mostrar-te o que deves evitar. E tu deves manter-te e comportar-te de maneira tal que teu confessor e teus amigos não receiem repreender-te por teu mau procedimento. Assiste devotamente, tanto no coração como externamente, aos ofícios da santa Igreja, especialmente na Missa, em que se faz a Consagração. Ajuda com coração bondoso e compassivo aos pobres, aos infelizes e aos aflitos, conforta-os e auxilia-os em toda a medida que possas. Mantém os bons e abate os maus costumes de teu reino. Não cobices o que é de teu povo e não carregues tua consciência com impostos e tributos. (…) Para ministrar a justiça e garantir o direito de teus súditos, sê leal e inflexível, sem vergar para um lado nem para o outro; mas sustenta no seu direito e apoia na sua demanda o pobre, até que a verdade esteja clara. E se alguém mover uma ação contra ti, não prejulgues nada até que tenhas sabido a verdade; pois então teus conselheiros julgarão com mais destemor e com justiça, ou a teu favor ou contra ti. Se algo tiveres que pertence a outro, quer seja obtido por ti quer tenha vindo a ti por teus antepassados, devolve-o sem tardança, e se a questão for duvidosa, faz com que seja examinada, logo e diligentemente, por pessoas sábias. Atenta para que teus povos vivam sob ti em boa paz e na lealdade. Sobretudo, conserva as cidades boas e os costumes do teu reino no estado e na franquia com que teus maiores os conservaram; e se há algo a melhorar, melhora e corrige, e conserva-os em favor e com amor: pois devido à força e à riqueza das grandes cidades, teus súditos e os estrangeiros temerão fazer qualquer coisa contra ti, e especialmente teus pares e teus barões. Honra e ama todas as pessoas da santa Igreja, e toma tento para que não se suprimam ou diminuam os dons e as esmolas que teus antepassados concederam. (…) Destina os cargos da santa Igreja a pessoas de bem e de vida sem mancha; e faz isso sob conselho de homens prudentes e pessoas honestas. Evita de empreender, sem grande deliberação, guerra contra um príncipe cristão; e se te for preciso fazê-la, poupa então a santa Igreja e as pessoas que nenhum mal te fizeram. Se guerras e litígios se elevarem entre teus súditos, apazigua-as logo que possas. Cuida de ter bons oficiais e magistrados, e inquire com frequência acerca deles e das pessoas da tua casa: como se mantêm eles, e se neles não há algum vício de grande cobiça, falsidade ou dolo. Empenha-te para afastar de teu reino qualquer tipo de ruim pecado; especialmente faz cair todo o teu poder sobre os falsos juramentos e sobre a heresia. Cuida para que as despesas de tua casa sejam razoáveis. E por fim, filho caríssimo, manda cantar Missas por minha alma e dizer orações em todo o teu reino, e outorga-me uma parte especial e inteira em todo o bem que fizeres. Dou-te, caríssimo filho, todas as bênçãos que um bom pai pode dar a um filho. Que a bendita Trindade e todos os Santos te guardem e preservem de todos os males; e que Deus te conceda a graça de fazer sempre sua vontade, de sorte que Ele seja honrado por ti e que tu e eu possamos, após esta vida mortal, estar juntos com Ele e louvá-Lo para sempre. Amém” (Mémoires de Joinville, cap. CXLV. Tradução de A.A.S.).

TESTAMENTO de Luís Alves de Lima e Silva, Duque de Caxias:

“Em nome de Deus. Amém. Eu, Luís Alves de Lima, Duque de Caxias, achando-me com saúde e meu perfeito juízo, ordeno o meu testamento, da maneira seguinte: sou católico romano, tenho nesta fé vivido, e pretendo morrer.

Sou natural do Rio de Janeiro, batizado na freguesia de Inhamerim; filho legítimo do Marechal Francisco de Lima e Silva, e de sua legítima Mulher, dona Mariana Cândida Bello de Lima, ambos já falecidos.Fui casado à face da Igreja com a virtuosa dona Anna Luiza Carneiro Viana de Lima, Duquesa de Caxias, já falecida, de cujo matrimônio restam dois filhos que são Luiza e Anna, as quais se acham casadas; a primeira com Francisco Nicolas Carneiro Nogueira da Gama, e a segunda, com Manoel Carneiro da Silva, as quais são as minhas legítimas herdeiras.

Declaro que nomeio meus testamenteiros, em 1º lugar, o meu genro Francisco Nicolas, em 2º meu genro Manoel Carneiro, em 3º meu irmão e amigo, o Visconde de Tocantins, e lhes rogo que aceitem esta testamentária, da qual só darão contas no fim de dois anos.

Recomendo a estes que quero que meu enterro seja feito, sem pompa alguma, e só como irmão da Cruz dos Militares, no grau que ali tenho. Dispensando o estado da Casa Imperial, que se costuma a mandar aos que exercem o cargo que tenho.Não desejo mesmo, que se façam convites para o meu enterro, porque os meus amigos que me quizerem fazer este favor, não precisam dessa formalidade e muito menos consintam os meus filhos que eu seja embalsamado.

Logo que eu falecer deve o meu testamenteiro fazer saber ao Quartel General, e ao ministro da Guerra que dispenso as honras fúnebres que me pertencem como Marechal do Exército e que só desejo que me mandem seis soldados, escolhidos dos mais antigos, e melhor conduta, dos corpos da Guarnição, para pegar as argolas do meu caixão, a cada um dos quais o meu testamenteiro, no fim do enterro, dará 30$000 de gratificação.

Declaro que deixo ao meu criado, Luiz Alves, quatrocentos mil réis e toda a roupa do meu uso.

Deixo ao meu amigo e companheiro de trabalho, João de Souza da Fonseca Costa, como sinal de lembrança, todas as minhas armas, inclusive a espada com que comandei, seis vezes, em campanha, e o cavalo de minha montaria, arreado com os arreios melhores que tiver na ocasião da minha morte.

Deixo à minha irmã, a Baroneza de Suruhi, as minhas condecorações de brilhantes da ordem de Pedro I como sinal de lembrança e a meu irmão, o Visconde de Tocantins, meu candieiro de prata, que herdei do meu pai.

Deixo meu relógio de ouro com a competente corrente ao Capitão Salustiano de Barros Albuquerque, também como lembrança pela lealdade com que tem me servido como amanuense.

Deixo à minha afilhada Anna Eulália de Noronha, casada com o Capitão Noronha, dois contos de réis. Cumpridas estas disposições, que deverão sair da minha terça, tudo o mais que possuo será repartido com as minhas duas filhas Anna e Luiza, acima declaradas.

Mais nada tenho a dispor, dou por findo o meu testamento, rogando as justiças do país, que o façam cumprir por ser esta a minha última vontade escrita por mim e assinada.

Rio de Janeiro, 23 Abr 1874. a) Luís Alves de Lima, Duque de Caxias”.

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

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