Burocracia: a mais brasileira das instituições

José Renato Nalini

 

Empenham-se as raras consciências lúcidas de que o Brasil dispõe, no sentido de eliminar praxes procedimentais ritualísticas, calcadas numa visão labiríntica de administração pública e que martirizam os empreendedores.

A teia robusta de exigências formais é um obstáculo intransponível para quem quer produzir. Atormenta a todos. Representa desvaliosa perda de tempo e alimenta o generalizado desânimo em relação ao governo.

O fenômeno é atemporal. Persiste no século 21, a despeito da imersão do mundo civilizado nas tecnologias da Quarta Revolução Industrial. Encontra fecundo terreno na algaravia de um ordenamento excessivo, produzido em abundância que torna o direito uma ferramenta da Inquisição, em lugar de facilitar a vida cidadã.

Herança lusa? Mas como é que Portugal, principalmente após seu ingresso na União Europeia, acertou o passo com a contemporaneidade? O que justifica a permanência de praxes anacrônicas, de império do princípio da presunção de desonestidade, em sentido frontalmente inverso à proclamação constitucional de prevalência da não culpabilidade?

Não conforta saber que brasileiros ilustres, no decorrer da História, também foram vítimas da mais inclemente e ignorante burocracia.

O exemplo de André Rebouças é emblemático. Baiano culto, engenheiro que estudou na Europa e se tornou autoridade universalmente respeitada, construiu as Docas do Rio, planejou obras grandiosas para todo o território continental de sua terra, saiu escorraçado do País na noite de 17.11.1889, acompanhando o Imperador Pedro II, banido pelo golpe republicano.

A essa altura, já estava com seu tempo de magistério na Escola Politécnica inteiramente cumprido. Só que os proventos de sua jubilação não chegavam ao exílio. Vivia desse mísero recurso e recebeu informação do Tesouro Brasileiro que não podia mais pagar, enquanto não fosse declarada a data da licença do Governo para residir na Europa.

Surreal! Kafkiano! Foi expulso do Brasil e tinha de comprovar “licença para morar no exílio”?. Mas teve de se submeter às exigências burocráticas. Provar que foi jubilado por decreto de 23.1.1892, quando ausente da Pátria. O decreto reconhecia, implicitamente, que poderia continuar a residir no estrangeiro. Assim o entendeu o Tesouro Nacional de 1892 a 1895. Como questionar a jubilação, assim chamada a aposentadoria à época, direito por serviços prestados durante 35 anos, desde 15.3.1854 até 15.11.1889? Até o dia da malfadada “Proclamação da República”, esteve na Escola Politécnica a lecionar e a examinar seus alunos.

Ao esboçar sua defesa e requerer o reconhecimento de seus direitos, afirmava aos amigos: “Repito que vivo aqui fazendo prodígios de abstenção, de clausura, que não me seriam permitidos no Brasil. No estado revolucionário, em que vivem permanentemente, não é possível nem abstenção, nem neutralidade”.

Não o consolou o telegrama que recebeu de Afonso Taunay, em 19.12.1895, a comunicar que o Engenheiro Paulo de Frontin o mandava consultar se a Congregação Politécnica poderia propor sua reintegração na Cadeira em que jubilado.

Ele recusou, embora contristado. Era amigo de Frontin e de Taunay. Mas, ponderou: “A jubilação é um direito meu: a reintegração seria um favor do Governo. Aceitando, eu ficaria moralmente morto. Sabe quanto é forte em mim o sentimento da gratidão; ficaria escravizado ao Governo a quem devesse tamanho favor”.

Era um homem de escrúpulos, reconhecia e explicitava: “Ter escrúpulos; ter muitos escrúpulos. É exatamente o que ora me acontece. Tenho escrúpulos; tenho muitos escrúpulos que me impedem de voltar ao Brasil. Tenho escrúpulos de faltar à coerência; tenho escrúpulos de aviltar a dignidade pessoal; tenho escrúpulos de quebrar a integridade do meu caráter. É terrível o tribunal da nossa consciência. Não há sofisma possível. A linha reta; a linha reta absoluta. Nada de curvas e vacilações. Eu creio que esta lição prática de caráter vale mais do que todas as lições da Ciência, que eu pudesse dar na Escola Politécnica”.

A quantos e a quais líderes contemporâneos ocorreria esta reflexão escrupulosa? O que responderiam a um convite do Governo? Têm pronta a resposta de que os tempos são outros e que não foram vítimas da burocracia. Ainda bem!

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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo

 

 

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