Recordações saudosísticas de sexagenário

Armando Alexandre dos Santos

 

Tratamos, no último artigo, da reciclagem – um costume que nossos antepassados praticavam no seu dia-a-dia e que desapareceu nas últimas décadas, por efeito da industrialização acelerada, que causou o barateamento dos custos da produção industrial e alimentar. Não somente passamos a desperdiçar alimentos aproveitáveis e tecidos ou papéis ainda em condições de servir, mas também objetos de uso mais duradouro tenderam a se tornar descartáveis.Há inúmeros exemplos que podem ser lembrados, de objetos desses.

Antigamente, todo homem adulto possuía a sua navalha de fazer a barba, e as navalhas, geralmente de bom aço, eram usadasa vida inteira. Às vezes eram até passadas para filhos e netos, servindo a duas ou três gerações de homens da mesma família. Ainda hoje, em antiquários e em leilões de antiguidades é comum aparecerem velhas navalhas de bem mais de um século de existência, fabricadas em excelente aço de Solingen, na Alemanha, ou de Toledo, na Espanha, em perfeitas condições de utilização. São valorizadas como antiguidades, como curiosidades, mas quase ninguém mais as usa, nem mesmo os barbeiros de profissão. Os leitores jovens que me leem (se é que eles existem…) se perguntarem aos seus avós, saberão como é que desapareceu o uso das navalhas.

Já na primeira metade do século XX, generalizou-se o uso dos aparelhos de barbear abastecidos com lâminas finas trocáveis, as famosas giletes. Houve também, pela metade do século, barbeadores elétricos, mas, ao que parece, não chegaram a se generalizar. E, já mais perto do final da centúria, estabeleceu-se a voga dos aparelhos de barbear inteiramente descartáveis, com corpo de plástico e laminazinha metálica; são usados apenas uma ou duas vezes e jogados fora.

Com instrumentos de escrita, processo análogo se deu. O século XX iniciou com velhas penas metálicas sendo molhadas em tinteiros e com as escritas sendo cuidadosamente secadas com os tradicionais mata-borrões. Assistiu depois à generalização das canetas tinteiro, que embutiam no seu corpo o reservatório de tinta e (novidade maravilhosa!) dispensavam o uso de mata-borrões, porque a tinta que soltavam era tão ajustada que secava quase instantaneamente.Vieram em seguida as canetas esferográficas, patenteadas na Argentina pelo húngaro László Biró e mais tarde vulgarizadas pelo francês Marcel Bich, que lançou no mercado as famosas canetas Bic, que eram tão baratas que praticamente se tornavam descartáveis. Não terminou esse século sem que entrassem em cena os teclados de computador, por meio dos quais está desaparecendo a escrita manual. Hoje, quase mais nada se escreve à mão, nem mesmo cheques bancários, também em vias de desaparecimento. Ainda sou do tempo em que, nos cursos primários, se ensinava e praticava caligrafia – a arte de escrever com letra bonita e regular. Essa arte desapareceu completamente, por falta de praticantes. Hoje, até professores universitários com títulos doutorais, quando precisam escrever à mão alguma coisa (por exemplo, dedicatória de um livro de sua autoria), produzem garranchos medonhos que, antigamente, envergonhariam um aluno de curso ginasial.

E que falar de relógios? Um relógio de bolso, antigamente, era objeto de luxo. Dava status. Era legado por testamento a um filho, a um neto, a um amigo muito próximo. Portar um relógio que pertenceu a um antepassado ou a um amigo falecido significava prestar uma homenagem a sua memória. Quando o Marechal Osório, herói da Guerra do Paraguai, faleceu, seu filho quis homenagear o mais ilustre dos amigos de seu pai, oferecendo a esse amigo o velho relógio que acompanhara o “centauro dos Pampas” durante a Guerra do Paraguai. Quem era esse amigo? Nada menos que o Conde d´Eu, sob cujas ordens Osório gloriosamente servira, na fase final da guerra e, especificamente, na importante batalha de Peribebuí. O Conde d´Eu conservou com veneração essa relíquia do velho companheiro de armas, conforme registrou numa carta que escreveu à Baronesa de Loreto.

Todos os antigos possuíam seus relógios mais ou menos históricos. Até simples plebeus, como o que escreve estas linhas. Ainda conservo, se bem que guardado numa gaveta e fora do uso diário, um velho relógio suíço de excelente marca (Zenith), fabricado no fim do século XIX e premiado na Exposição de Paris, do ano de 1900. Pertenceu a um tio-avô meu, que lutou na Primeira Guerra Mundial, no Corpo Expedicionário português que serviu em território belga.

Os relógios de bolso foram sendo substituídos, já nas décadas iniciais do último século, pelos relógios de pulso, mais práticos.O custo de cada relógio foi, também, caindo e o próprio relógio deixou de ser um objeto quase de luxo, passando a ser algo corriqueiro, ao alcance de qualquer pessoa. Vieram, depois da Segunda Guerra Mundial e do reerguimento econômico do Império do Sol Nascente, os relógios japoneses(Seiko, Orient e Citizen, entre outros), que passaram a ser movidos por quartzo. Rapidamente dominaram o mercado mundial, quebrando a hegemonia que, durante séculos, havia sido exercida pelos fabricantes helvéticos. Eram mais práticos, baratos e tinham, ademais, a vantagem de não precisar, como os antigos relógios mecânicos, de ajustes milimétricos dados por relojoeiros hábeis, para atingiram o padrão desejável da exatidão. Hoje, até os relógios de pulso estão desaparecendo. Quase todo mundo “olha as horas” no celular ou no smartphone. E os mais jovens nem sequer sabem “ver as horas” em relógios de ponteiro.

Recordo a surpresa que tive quando, aplicando certo dia aula prova numa sala de aula de adolescentes do Ensino Médio, um aluno me perguntou baixinho as horas. Queria saber quanto tempo ainda lhe restava para terminar a prova. E eu, ingenuamente, lhe estendi o braço, para ele próprio ver as horas no meu relógio de pulso. E o menino me disse: – Não sei ver as horas nesses relógios complicados do tempo do meu avô. Meu pai ainda aprendeu, mas acho que já esqueceu…

Chega de recordações saudosísticas de sexagenário! Poderia escrever muito mais, mas o espaço chegou ao fim…

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

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