Uma novidade muito antiga que estão descobrindo de novo

Armando Alexandre dos Santos

 

Fala-se hoje, quase obsessivamente, na necessidade de reciclagem, como se se tratasse de uma grande novidade. Mas os nossos avós já sabiam muito bem o que é reciclagem e a praticavam por hábito, antes que a maldita “mentalidade do descartável” dominasse toda a cultura (ou falta de cultura) contemporânea. Apenas a designavam com outro nome: economia, palavra proveniente do grego “oikós” (lar, ambiente doméstico) e “nomeía” (norma, regra). Etimologicamente, economia quer dizer boa administração do lar.

Reciclar, ao pé da letra, significa renovar o ciclo, dando uma nova utilização a algo que já foi usado, e reaproveitando, com sabedoria e inventividade, coisas que aparentemente já não têm utilidade. Reciclar é, pois, uma forma excelente de fazer economia. Não se faz economia sem reciclar.

Antigamente, muita coisa era reciclada. Um lençol velho, por exemplo, remendava-se tanto quanto possível, até nas melhores famílias. Conta-se que quando José Bonifácio, o Patriarca da Independência, ficou doente e foi visitado por D. Pedro I, recebeu-o em seu quarto, coberto por lençóis com vários remendos de panos diferentes, e até gracejou com o imperador, sobre a “originalidade daqueles bordados”. Quando um lençol não mais tinha condições de ser usado, era habilmente transformado por nossas diligentes avós em lenços, ou em panos de prato.

Uma roupa, quando rasgada ou envelhecida, ainda servia para ser usada como pijama, ou como roupa própria para o trabalho mais pesado. Um paletó, depois de muito usado e já um tanto desbotado, era jeitosamente virado do avesso: um oficial de alfaiataria desfazia todas as suas costuras e refazia o paletó ao contrário; a face do tecido que tinha ficado oculta era, então, colocada do lado de fora, e a face já esmaecida por anos de uso ficava do lado de dentro. O resultado era um paletó – digamos assim, para usar uma expressão atual – seminovo! Um sapato velho, já inadequado para se usar na rua, ainda tinha uma longa sobrevida, como chinelo para ser usado no conforto e na intimidade da vida doméstica.

Meias eram habitualmente cerzidas com cuidado, e para isso até havia um instrumento adequado, geralmente de madeira, em forma de ovo, um pouco maior do que os habituais ovos de galinha. Eram colocados dentro da meia e, assim tornavam-se visíveis e facilmente consertados os furos. Ainda tenho em casa um desses “ovos de costurar meias”, muito práticos e funcionais. Hoje, ao menor furinho, joga-se fora a meia e se substitui por outra…

Cascas de ovo, ossos de frango, pó de café usado, também não eram jogados fora sem mais. Pelo contrário, eram levados ao quintal e depositados junto a alguma planta, para fornecer cálcio e outros nutrientes à planta, alimentando assim seu ciclo vital. Cascas de maçã serviam para a confecção de um excelente chá calmante, que se tomava à noite, antes de dormir. Cascas de abacaxi, bem limpas, eram cozidas com açúcar e deixadas fermentar, em garrafas com rolhas presas com arame fino, para não estourarem com a fermentação; obtinha-se em poucas semanas uma bebida espumante deliciosa, que substituía o champanhe, nas casas mais simples.

O papel, então, era algo que se poupava por princípio. Para começo de conversa, só se escrevia a tinta aquilo que deveria ser preservado e arquivado. Rascunhos, cálculos, meros lembretes ou apontamentos provisórios, escreviam-se a lápis, de modo que pudessem ser apagados e, assim, o papel continuasse aproveitável. As páginas em branco do verso de textos já sem serventia também eram usadas para rascunhos ou cálculos. Usava-se muito a borracha, e quando não havia borracha, apagava-se com miolo de pão. Os mais velhos dos meus leitores ainda se lembrarão disso.

Recordo que tomei contato muito vivo com essa realidade quando, há mais de 40 anos, fui convidado por um velho professor de matemática a organizar seus arquivos pessoais. Encontrei numerosas folhas de textos escritos, que continham no verso cálculos e equações (que para mim, jejuno em matemáticas, eram indecifráveis), sem a menor relação com o que estava escrito no anverso.

O salutar hábito de economia era generalizado em todos os ambientes, em todos os níveis sociais. Recordo ter ouvido contar que certa ocasião Winston Churchill, ainda jovem militar, recebeu de seus superiores a incumbência de elaborar um parecer. Estava-se generalizando, no exército inglês, o costume de serem reaproveitados os envelopes já usados. Um militar recebia uma carta e, em vez de jogar fora o envelope, riscava os nomes e endereços do remetente e do destinatário e o utilizava para fazer circular correspondência interna, rotineira e menos formal. Alguns oficiais superiores viram, naquele reaproveitamento, um perigoso precedente que poderia fazer cair o nível das forças armadas britânicas e propuseram ao Alto Comando que fosse emitida uma ordem proibindo a prática. Argumentavam que os envelopes eram muito baratos e fazer economia com eles era uma prática estúpida, que não se justificava racionalmente. Churchill foi encarregado de estudar o assunto. Depois de muito estudo e muitos cálculos, o futuro vencedor do nazifascismo confirmou que a economia decorrente do reaproveitamento dos envelopes era de si insignificante, mas recomendou que se incentivasse esse reaproveitamento. Por quê? Por causa do efeito psicológico salutar que produzia na tropa o hábito da poupança, até nas menores coisas. Tinha razão.

Havia, pois, em todos os níveis da sociedade, empiricamente, o costume de poupar, de aproveitar e de reaproveitar tudo. Nada se jogava fora sem necessidade. Mas nas últimas décadas, infelizmente, esse costume sábio e salutar deixou de ser praticado. Ocorreu, de um lado, um enorme crescimento da população; e, de outro, a industrialização se intensificou e passou a produzir produtos mais baratos, de menor qualidade, mais rapidamente perecíveis. O apelo ao consumismo desenfreado, simultaneamente, também aumentou, na mídia escrita, falada e televisiva. O resultado disso tudo é que cresceu desmedidamente, e ameaça devorar-nos como um câncer, a maldita mentalidade do descartável.

Tudo hoje é descartável: objetos de uso diário, utensílios domésticos, mobília, aparelhos tecnológicos etc. etc. etc.. Tudo ficou descartável. Tudo mesmo… até as afeições, os amores e os casamentos!

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Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

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