Em busca do tempo revelado

Cecílio Elias Netto

 

Admito a dúvida: escrevo, não escrevo? Ouvindo o coração, decido por fazê-lo. Tão estranho tudo está, com ansiedades crescentes, que, diante de uma luz, por pequena seja, é tolice não observá-la. Tudo estava confuso, complicado, isso já há mais de um ano. Lutando contra uma enfermidade grave, precisei de todas as forças. Foi quando surgiu o novo governo. E eu – como outros de minha geração, em especial a ligada ao político-social – já conhecia essa gente. Não consegui acreditar. E as energias foram ainda mais consumidas. Enfraqueci, resistindo porém. Ou tentando fazê-lo.

Quando me pareceu ter, mesmo que provisoriamente, controlado a enfermidade, eis que apareceu o coronavírus. Convalescendo de algo persistente e, agora, o vírus – reconheço ter sido demais para mim. Senti-me perdido de mim. Por mais tolo pareça, isso, para mim, é verdadeiro. Pois, reconhecendo ter-me chegado a velhice, lá estava, eu, incapaz de despojar-me de participações de toda uma vida, profissionais e vitais. Descobri-me prisioneiro delas. Mas a juventude e a maturidade haviam-se ido. Qual, então, o meu novo papel? Quem era eu? Em quem ou em quê me transformara? Ora, ser-me-ia até mesmo degradante ver o barco afundar e não enfrentar a tormenta.

Que não me vejam parodiando o histórico discurso de Martim Luther King: “Eu tenho um sonho”. E jamais me atreveria a me aproximar de Proust, com seu admirável e complexo “Em busca do tempo perdido”. A verdade, porém, é que eu tive um sonho. Se Luther King tinha seu sonho, verdadeiro e arrebatador – eu tive o meu, dormindo e inteiramente dominado por uma explosão do inconsciente. Sonhos, há que se acreditar neles. Os de olhos abertos.  E desse sonho – arrebatador também em mim – preciso escrever, necessidade imperiosa. Pois o sonho – como se me sacudisse por inteiro – me chamou para ir-me – ou irmo-nos – em busca do tempo revelado.

Lá estávamos nós, agitados, um grupo de homens e mulheres. Discutíamos, estávamos em busca de algo. Foi quando surgiu o Padre Baron, o primeiro diretor do Colégio Dom Bosco, o generoso e humilde Padre Pedro Baron. Ele apenas sorriu, sugeriu-nos silêncio, levando o dedo polegar aos lábios. E, em silêncio, pôs-se a caminhar, convidando-nos a acompanhá-lo. E, então, era Dom Aníger Melilo que estava no lugar dele, caminhando e acenando-nos para segui-lo. No sonho, tudo era caminhar, caminho… Daí, uma voz – suave, apenas suave – balbuciava: “Apocalipse, revelação, reinterpretação…” Logo em seguida, homens – e apenas homens – rezavam o terço. E, no sonho, eu – que nunca estive em terço dos homens – vi que eles passaram a caminhar.

Na madrugada de frio intenso, acordei molhado de suor. E aceleradas, as batidas do coração. De repente, toda aquela confusão se me tornara clarificada. Estamos no apocalipse, sim. Na revelação de que um mundo acabou, findou-se. Mas que há outro. E que é preciso caminhar – com espiritualidade e sabedoria – para alcançá-lo e construí-lo. Como? Reinterpretando tudo, abandonando conceitos ultrapassados ou equivocados. E, entendi no sonho: o caminho já está revelado. Devemos ir em busca dele. Mas com corações mais limpos e verdadeiros. Não se trata mais de “Amar a Deus sobre todas as coisas”, um mandamento. Trata-se de uma revelação: “Quando você entender que o reino já está na Terra, que o Paraíso é aqui, então você verá todas as maravilhas e desejará amar a Deus sobre todas as coisas. Por gratidão”.

Eu tive, pois, um sonho que me sacudiu para ir em busca do tempo revelado. Com companheiros.

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Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana ([email protected])

 

 

 

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