Como desapareceram os dois pirralhos

Nos dois últimos artigos, recordei meu amigo Marcelo Meira Amaral Bogaciovas, o grande genealogista que nos deixou no último dia 7 de maio. Ainda homenageando sua memória, relato hoje um episódio engraçado, do qual Marcelo e eu participamos juntos, na nossa já distante mocidade.

O fato se passou em 1989. Marcelo tinha, na ocasião, 36 anos e eu 34. Estávamos os dois bem no centro de São Paulo, à porta do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, conversando amenamente com o Dr. Duílio Crispim Farina, médico e historiador que, na ocasião, era um dos principais diretores do Instituto, além de membro da Academia Paulista de Letras. Mais tarde, ambos nos tornaríamos muito amigos dele, mas na ocasião ele mal nos conhecia e nos tratava professoral e paternalmente, como a dois meninos.

De fato, ele era muito mais velho do que nós, poderia ser quase nosso avô. E, grande orador que era, conversava á moda antiga, com frases bem torneadas e bem declamadas, em tom sempre altissonante, como se estivesse a todo momento discursando para uma multidão. Era essa uma peculiaridade dele, aliás muito simpática. Como ele, outro membro ilustre do IHGSP tinha essa mesma característica: o heraldista Lauro Ribeiro de Escobar, igualmente falecido e igualmente tendo deixado muitas saudades.

Dr. Duílio era autor de diversos livros de História da Medicina luso-brasileira, entre os quais “Esculápios portugueses das sete partidas”, “Medicina no Planalto de Piratininga”, “Esculápios, Boticas e Misericórdias em Piratininga de Outrora”. Era também autor de uma obra particularmente notável, “Tempo de vida, doença e morte na Casa de Bragança”, na qual analisou, como médico e como historiador, a nosografia póstuma das sucessivas gerações de Bragança, desde o seu tronco, São Nuno Álvares Pereira, até o imperador D. Pedro II. Como médico, analisou os sintomas de doenças registrados pelos antigos cronistas e biógrafos, e como historiador os contextualizou e comentou. O resultado foi um livro maravilhoso, que proporciona um inesperado passeio por séculos de história de uma dinastia, sempre no ângulo de observação de um médico, que também era historiador.

Estávamos, como disse, conversando de modo ameno e o assunto fluía naturalmente sobre os velhos troncos paulistas, estudados por Pedro Taques e Silva Leme. Dr. Duílio, com visível satisfação por constatar nosso interesse na matéria, ia explanando, sempre altissonante, sobre ela, mas sempre nos considerando meninos ignorantes, que nada sabiam e de tudo precisavam ser instruídos… A certa altura da conversa, ele se referiu a Gaspar Frutuoso.

– Para estudar as origens açorianas de muitas famílias paulistas existe um autor de importância fundamental. Vocês são ainda muito jovens, mas quando ficarem mais velhos e aprofundarem mais seus estudos tomarão conhecimento dele. É o Gaspar Frutuoso.

Nesse momento, Marcelo assentiu, concordando que o Gaspar Frutuoso é fundamental. Dr. Duílio, surpreso, perguntou: – Você já ouviu falar dele? – Sim, eu consegui adquirir todos os volumes de “Saudades da Terra” e até visitei a casa dele, em Ponta Delgada.

Dr. Duílio arregalou os olhos e exclamou: – Oh! Você então sobe no meu conceito, jovem! E prosseguiu a conversa, passando a tratar o Marcelo como adulto. O único pirralho, na roda, era eu, que fiquei resignadamente nessa modesta posição. A certa altura, Dr. Duílio, que não escondia de ninguém suas convicções monarquistas, comentou: – Acabei de ler, sobre monarquia, um livro recente. Excelente! Fantástico! Recomendo que vocês leiam também. Apareceu ontem à tarde, no meu consultório, um vendedor muito simpático, um tal de Bertassi, e me vendeu. Levei para casa, comecei a ler depois de jantar e não consegui parar. Fui até de madrugada, num jato só, até o fim. Leiam esse livro, que vocês vão gostar.

Marcelo piscou para mim discretamente e perguntou se não era um livro de capa verde, chamado “A Legitimidade Monárquica no Brasil”.  – Esse mesmo! Não deixem de ler que vão gostar muito.

Quando Marcelo revelou que o autor do livro era eu, Dr. Duílio olhou para mim, enternecido, e perguntou: – Foi você, meu filho? Que idade você tem? E, depois, profetizou algo que, infelizmente, nunca se cumpriu: – Você vai longe, meu filho, vai muito longe…

Por um milagre, havia desaparecido o último pirralho da roda! Depois disso, continuamos a conversar. Foi a primeira de uma infindável série de conversações, nas quais muito aprendemos com o saudoso Dr. Duílio que nunca mais nos tratou como meninos e sempre nos honrou com sua amizade, até falecer, em 2003.

Quando nos encontrávamos, Marcelo e eu dávamos boas risadas, lembrando desse episódio, que aqui compartilho com os leitores desta coluna, recordando com saudades dele e também do Dr. Duílio.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

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