Politicalha rasteira

José Renato Nalini

A falência da Democracia Representativa, em todo o mundo em que vigora tal sistema, é fruto de inúmeras causas. Mentes tacanhas não se aperceberam do fenômeno alucinante da Quarta Revolução Industrial. Inteligência Artificial, algoritmos, Internet das coisas, nanotecnologia, robótica, blockchain, bitcoin, fake news, a invasão onipotente das redes sociais mudou o mundo. Para melhor? Não se sabe ainda.
O que de fato ocorreu foi a fragmentação dos partidos políticos, em gravíssima crise. Não pode funcionar uma República com quase quarenta partidos. E com o Fundo Partidário que garante a sobrevivência dos nanicos, daqueles que não conseguem empolgar o eleitorado. Mas garantem vida longa aos grandes que apresentam nítida fratura, fruto do inevitável cansaço do material.
Ninguém mais suporta mentira, promessa vã, falsidade, demagogia, confusão entre o público e o meu interesse. Quem é que se sente representado? A política, tal como praticada nos últimos tempos no Brasil, só desilude. Faz com que as pessoas procurem resolver seus problemas pro si mesmas, ressuscitando o princípio da subsidiariedade, mas nutrindo um desalento sem fim. Uma falta de “não se sabe o que”, um sentimento de nostalgia, uma indefinida sensação de privação de algo essencial.
Entretanto, a política ainda é necessária. Principalmente quando a humanidade não atingiu o estágio ideal em que poderia prescindir dela para uma coordenação mais inteligente do convívio. Política tal como a conceberam os gregos, Aristóteles principalmente. Participação na vida da polis. Atuação autêntica em benefício de todos.
Ruy Barbosa tem páginas esplêndidas sobre a política e sobre sua corruptela, a politicalha. Em 1918, escreveu: “A política afina o espírito humano, educa os povos no conhecimento de si mesmos, desenvolve nos indivíduos a atividade, a coragem, a nobreza, a previsão, a energia, cria, apura, eleva o merecimento. Não é esse jogo da intriga, da inveja e da incapacidade, a que entre nós se deu a alcunha de politicagem. Esta palavra não traduz ainda todo o desprezo do objeto significado. Não há dúvida que rima bem com criadagem e parolagem, afilhadagem e ladroagem. Mas não tem o mesmo vigor de expressão que os seus consoantes. Quem lhe dará com o batismo adequado? Politiquice? Politiquismo? Politicaria? Politicalha? Neste último, sim, o sufixo pejorativo queima como um ferrete, e desperta ao ouvido uma consonância elucidativa.
Política e politicalha não se confundem, não se parecem, não se relacionam uma com a outra. Antes se negam, se excluem, se repulsam mutuamente. A política é a arte de gerir o Estado, segundo princípios definidos, regras morais, leis escritas, ou tradições respeitáveis. A politicalha é a indústria de o explorar a benefício de interesses pessoais. Constitui a política uma função, ou o conjunto das funções do organismo nacional: é o exercício normal das forças de uma nação consciente e senhora de si mesma. A politicalha, pelo contrário, é o envenenamento crônico dos povos negligentes e viciosos pela contaminação de parasitas inexoráveis. A política é a higiene dos países moralmente sadios. A politicalha, a malária dos povos de moralidade estragada”.
Em tempos de volta de sarampo, de dengue, de varíola, de febre amarela, é importante refletir sobre essa página de Ruy. E pensar o que é que se pode fazer para ressuscitar a boa política e para escoimar do cenário os atores da politicalha.
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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-Graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APl) – 2019-2020

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