Educação & Afins – Simonia, nicolaísmo e nepotismo no clero medieval

Armando Alexandre dos Santos

Continuemos a tratar do tema iniciado na semana anterior, sobre a decadência das instituições eclesiásticas no período que se seguiu ao desfazimento do Império carolíngio. Duas foram as irregularidades mais graves apontadas pelos cronistas na conduta do clero de todos os níveis, desde os mais modestos até os mais altos dignitários eclesiásticos: de um lado, a simonia, de outro o nicolaísmo.

Essas duas palavras necessitam uma explicação para serem bem entendidas. Chama-se simonia a conduta de quem obtém um cargo ou função eclesiástica por meios escusos, mediante pagamento em dinheiro ou em troca de favores políticos. Mais extensamente, aplica-se a palavra à venda de sacramentos, absolvições ou objetos sagrados. (ROBERTI, F.; PALAZZINI, P. (orgs.). Dizionario di Teologia Morale. Roma: Editrice Studium, 1957, verbete “Simonia”) A origem da palavra está em Simão, o Mago, que procurou comprar de São Pedro e dos Apóstolos o poder de fazer milagres e prodígios, conforme relatado nos Atos dos Apóstolos (8, 8-24).

Por nicolaísmo se designava genericamente a recusa do celibato sacerdotal, ou a prática sexual irregular e sacrílega por sacerdotes. A origem está no nicolaísmo, uma heresia gnóstico-judaica que existiu nos primeiros tempos da Era Cristã, a qual, segundo autores muito antigos, pregaria formas de amor livre, pela poligamia (um homem possuir várias esposas) ou pela poliandria (a mesma mulher ser parceira de vários homens). (Enciclopedia Espasa-Calpe.  Madrid: 1926, t. 38, verbete “Nicolaítas”)

Mesmo entre eclesiásticos de vida sexual ilibada, ocorria um outro desvio muito prejudicial à religião: o nepotismo. Nepos, nepotis é palavra latina que tanto designa e neto como o sobrinho e, mais largamente, qualquer descendente. Chamava-se nepotismo o favorecimento ilícito de sobrinhos ou outros parentes, por parte de um eclesiástico. Ainda na linguagem corrente do Brasil atual a palavra é usada para designar o favorecimento ilícito de parentes, por parte do detentor de um cargo público.

Entre eclesiásticos que não tinham e não podiam ter filhos, era muito frequente que favorecessem sobrinhos como se filhos fossem. Daí uns versinhos de autoria desconhecida, que outrora ensinavam nos seminários religiosos: “Se filhos, aos sacerdotes, / Cristo na Igreja negou, / Uma turba de nepotes (sobrinhos) / O diabo lhes legou.”

O nepotismo eclesiástico era uma praga que vicejou largamente no Medievo e ainda mais no Renascimento, deixando traços na literatura, facilmente perceptíveis por quem analisa obras literárias de época. Um exemplo entre incontáveis outros pode ser encontrado em Fèlix o el Libre de meravelles, obra escrita em 1288-1289 pelo filósofo e polígrafo catalão Ramon Llull (Raimundo Lúlio) com o intuito enciclopédico de condensar e vulgarizar todo o conhecimento humano. Trata-se de um livro ficcional com algo de fantástico, no qual o protagonista Félix é enviado por seu pai a percorrer o mundo e apreciar as maravilhas que nele colocou o Criador. Dividido em dez partes, nele se expõem noções teológicas, filosóficas, morais, cosmológicas e práticas do universo criado e da vida humana, nos seus aspectos mais variados. O estilo é muito leve, com inúmeras historietas e exemplos pelo meio, utilizando recursos literários fantasiosos que somente no século XX se tornariam habituais. É, desse ponto de vista, obra extraordinariamente pioneira. A certa altura do texto, há uma referência digna de nota: “– Era uma vez um bispo que tinha um sobrinho que muito amava. Aquele bispo tinha um castelo belo e muito rico em seu bispado, e tinha inveja daquele castelo que era seu, pois o invejava porque desejava que fosse de seu sobrinho. O príncipe daquela terra também invejava aquele castelo, e foi feita a questão de quem tinha mais inveja, o bispo ou o rei.”

À primeira vista, o texto parece absurdo: como o bispo podia ter inveja de um castelo que já lhe pertencia? E como podia, por inveja, desejar que algo que já lhe pertencia fosse de outra pessoa, no caso seu sobrinho? Para os homens que viviam naquele tempo, isso não era absurdo, mas era algo corrente; para eles, a explicação para a aparente absurdidade era muito clara, até mesmo intuitiva: o castelo pertencia à diocese e o bispo dele tinha somente o usufruto; mas, por inveja, desejava que aquele patrimônio eclesiástico passasse à posse de sua família, na pessoa do sobrinho. Tratava-se, pois de uma típica tentação de nepotismo.

Diante desse quadro de decadência, a reação eclesiástica foi oportuna e eficaz. Os séculos IX a XI marcaram um período de grandes reformas na Igreja. Os movimentos reformadores, brotados de modo mais ou menos espontâneo foram vários, surgidos em diferentes pontos da Europa. Surgiram ordens religiosas novas, houve mosteiros que procederam a reformas internas, com vistas ao afervoramento de seus membros e o retorno à espiritualidade que havia presidido às respectivas fundações, houve santos que, com seu exemplo de vida e seus ensinamentos, ilustraram pontualmente esse período. Mesmo em meio à decadência espantosa de costumes da corte pontifícia, houve alguns Papas que tentaram seriamente proceder a uma reforma.

Entretanto, sem a menor dúvida, o que marcou a grande reforma da Igreja nesse período foi a renovação realizada a partir da Abadia de Cluny, na Borgonha, a qual foi crescendo de influência e chegou a reformar o próprio Papado – com a chamada Reforma Gregoriana, chefiada pelo São Gregório VII, antigo monge de Cluny, que foi Papa de 1073 até sua morte, em 1085. Sobre Cluny e sua atuação, já escrevi em outra ocasião (Ver artigo “Cluny e a reforma gregoriana”, publicado nesta mesma coluna, do dia 7/12/2019).

Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

 

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