Educação & Afins – O Clero na Idade Média: luzes e sombras

Armando Alexandre dos Santos

Quando o Império Romano do Ocidente soçobrou, nos séculos V e VI, diante das sucessivas ondas de invasões bárbaras, somente a Igreja Católica permaneceu de pé. Dioceses, paróquias e sobretudo mosteiros continuaram a agir sobre os novos senhores do poder, num sentido civilizador e reconstrutor altamente benéfico. Esse papel, de uma forma ou de outra, a Igreja sempre continuou a exercer ao longo do milênio que se seguiu, mas, sendo constituída por homens, sua história é pontilhada de fraquezas e períodos de triste crise e decadência – quase sempre em razão de as duas esferas do poder, a espiritual e a temporal, se embaralharem na mentalidade dos membros da Igreja. As fraquezas e desvios de conduta de seus membros, a Igreja sempre conseguiu superar e corrigir, de modos diversos. Reformas internas, períodos de afervoramento, aparecimento de homens e mulheres que pelo exemplo de vida abriram novos caminhos e forneceram novos modelos de santidade à Igreja, criação de ordens religiosas novas adequadas ao combate das tendências errôneas de cada século esses sempre foram os mecanismos com que a Igreja conseguiu superar as inúmeras dificuldades surgidas ao longo de um percurso que já tem quase dois mil anos de existência.
Foi precisamente uma decadência dessas, e um reerguimento desses, que ocorreram em plena Idade Média, depois do desfazimento do Império Carolíngio. Os séculos X e XI foram, essencialmente, um período de reforma espiritual, de reconstrução interna da Igreja e de um transbordamento das consequências dessa reforma em benefício da sociedade civil.
O clero, especialmente, parecia necessitar de uma ampla e cabal reforma. “Todos os cronistas e moralistas pintavam, antes dessa reforma, um quadro muito sombrio da vida religiosa, dos costumes do clero e dos leigos”, registra o medievalista francês Jacques Heers (1924-2013), professor da Universidade de Paris-Nanterre: (História Medieval. São Paulo: Difel, 3ª. edição, 1981, p. 95), que acrescenta logo a seguir:
“Um dos flagelos do tempo, constantemente denunciado, é a incapacidade e a indignidade do clero. Mesmo no tempo de Carlos Magno, o cristianismo nem sempre havia penetrado perfeitamente nas zonas rurais, posteriormente, as incursões escandinavas, húngaras ou sarracenas destruíram as abadias e as igrejas, dispersaram os monges. O aumento da população e os novos arroteamentos em antigas florestas e pântanos impedem, conscientemente, que a maioria das novas aldeias ou vilarejos possua igreja e sacerdote, exceto uma simples capela. (…) Por outro lado, a desintegração da ordem pública provocara evidentemente a dominação dos leigos, do imperador ao simples senhor de aldeia, sobre os bens da Igreja. [O imperador] Henrique III, investido com o título de patrício romano, regulamenta as questões na cidade e se constitui em árbitro; em 1046, depõe os três papas que disputavam Roma e, no sínodo de Latrão, recebendo da assistência ajoelhada o pedido de escolher um novo pontífice, designa um germano, Suidger de Baberg (Clemente II). Em consequência disso, até 1057, todos os papas foram bispos alemães instalados pelo imperador. (…) Em todo o Ocidente, os soberanos nomeiam os bispos ou exercem duras pressões paa impor o candidato de sua escolha, um parente, um fiel, capaz de servi-los. Essa atitude justifica-se pelo considerável poder temporal do bispo, munido de feudos, de direitos de comando. Na mesma época, as abadias caem na mão de seus “advogados” (avoués), grandes senhores que renegam seu papel primitivo de justiceiros para administrar e explorar sistematicamente os bens dos mosteiros. As famílias poderosas, condes ou viscondes, consideram, frequentemente, bispados e abadias como bens próprios, estreitamente ligados ao patrimônio da linhagem senhorial. Enfim, nas aldeias rurais, o senhor da aldeia mantém as rendas da igreja paroquial, que podem ser por ele vendidas ou alienadas, que divide com seus filhos.” (op. cit p. 95-96).
Vê-se assim que a Igreja, nessas condições, perdeu em todos os níveis sua independência e capacidade de autogerir-se. Até mesmo a renovação dos quadros eclesiásticos acabava caindo nas mãos de leigos que não tinham, na escolha, critérios espirituais e apostólicos, mas procuravam indicar pessoas de sua confiança que servissem submissamente a seus interesses. Eram muitas vezes escolhidas pessoas indignas, sem conhecimentos teológicos e doutrinários, sem piedade e autêntica vida espiritual. O resultado dessa calamitosa e anômala intromissão da esfera temporal na espiritual foi o baixíssimo nível do clero, ignorante e moralmente relaxado. Voltaremos ao tema no próximo artigo.

Armando Alexandre dos Santos é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.

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