In Extremis – O pãozinho da guerra

Cecílio Elias Netto

“Estamos em guerra!”
Ouço o grito de governantes responsáveis que sabem não estarmos diante de uma gripezinha. Ouço e sou tomado pela ansiedade. E não compreendo se é, o dom da memória, presente ou castigo. São os mesmos gritos que, pela vida toda, me ecoam no mais íntimo de mim. São gritos sem som, os mais terríveis.
Nasci em 1940, um mês após os nazistas terem invadido a França, a “douce France”, nossa tão amada. Estávamos – à época, sim – em guerra. E nunca mais, a não ser em intervalos muito breves, deixamos de matar. Nascidos em 1940, nós, crianças, não tínhamos recursos tecnológicos a não ser os naturais, da pedra, da madeira, da água, do fogo. Não tínhamos nada para olhar a não ser o mundo. E, para brincar, tudo o que tínhamos era, também, o mundo. O admirável mundo dos quintais, das ruas, dos lagos, do rio, dos quarteirões cuja música era o matraquear das senhoras, vizinhas entre si.
De tanto correr descalços, nossos pés eram machucados, feridos por pregos enferrujados ou cacos de vidro; dedos esfolados de chutar bola de meia em terrenos baldios; braços arranhados por espinhos e galhos de árvores, que escalávamos imitando Tarzan. Andávamos pelas ruas descamisados, os peitos nus. Nossas roupas – além dos largos calções – eram feitas de panos de sacos de farinha, que nossas mães tingiam de azul em baldes enormes: o macacão, o zuarte.
Mas, apesar da liberdade de ir e vir – de correr mato a dentro, por ruas e calçadas – estávamos em guerra. E, por mais valentes fôssemos, o medo dos adultos nos contaminava. Era o medo do desconhecido, da incerteza, o medo do medo de nossos pais, medo de um mundo que nos era estranho, tão diferente daqueles castelos infantis que criávamos a cada dia. E o apavorante medo da fome.
Por incrível pareça, lembro-me de ocorrências e de acontecimentos desde os meus tenros três anos de idade. Aprende-se, sim, com o susto, com o medo, com as carências. Talvez, seja a mais fértil escola, desde que saibamos ou consigamos a ela sobreviver. E ninguém sobrevive sozinho. A vida é uma repartição, partilha.
A guerra trouxe a fome ao mundo. Não apenas aos campos de batalha, mas aos países, às cidades, às vilas e vilarejos. Também entre nós – aqui em nossa aldeia – faltou comida. E, em minha casa, tudo se agravou com a tragédia do atropelamento, por um caminhão, de minha irmãzinha de dois anos. Meus pais sucumbiram à dor. Pouco antes do colapso, minha mãe levara-me a um canto forçando-me a comer um pedaço de pão, pão de trigo. Pareceu-me ser uma oferta injusta: “Um pãozinho para mim? E meus irmãos?” E ela exasperou-se: “É você que mais precisa. Toda mãe sabe o que está fazendo.”
Pobrezinhos como nós, os vizinhos mobilizaram-se, socorrendo-nos, a solidariedade que salvou famílias, que salvou a humanidade. Tenho absoluta, plena consciência: estou vivo, sobrevivi por força da solidariedade, da fraternidade, da consciência de algo que vem sendo esquecido: comunhão entre as pessoas, comunidade, companheirismo, compaixão comunitária. Companheiro, companhia originam-se de duas palavrinhas latinas “cum panis” – com pão, o pão comum, o pão dividido. Como ocorreu nas catacumbas.
O único que, ainda, posso fazer é contar. Contando para testemunhar que esta hora amarga também terá fim. E que apenas a venceremos com as únicas armas verdadeiras: a solidariedade, a fraternidade, a compaixão. Governos com fuzis nas mãos e nos cérebros fazem, apenas, guerras sem vencedores. Agora, não é guerra. É uma luta universal que convoca ao amor.
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Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana ([email protected])

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