Educação & Afins – Dona Elisa não acreditava em mim…

Armando Alexandre dos Santos

As novas gerações não fazem nem ideia do sucesso que obtiveram, durante muitas décadas, os livros do escritor francês Júlio Verne, nascido em 1828 e falecido em 1905. Escreveu mais de cem romances, quase todos sucessos de vendas, nos quais revelava uma prodigiosa imaginação e conhecimentos geográficos e etnográficos vastíssimos. É considerado o inventor do gênero literário da ficção científica, com seus enredos fabulosos em que apareciam, extemporaneamente, submarinos, engenhos voadores, naves espaciais e modos misteriosos de produção energética que lembram muito a energia atômica. Seus conhecimentos geográficos e etnográficos eram vastíssimos, se bem que quase inteiramente fruto de leituras e estudos de gabinete, já que viajou relativamente pouco. Em seus romances há descrições impressionantemente precisas do interior da África, das estepes russas, da Índia, dos Estados Unidos, da China, até mesmo da nossa floresta amazônica. Muitos de seus livros foram adaptados para o cinema. Quem não se lembra de “A volta do mundo em 80 dias”, com David Niven no papel do fleugmático Phileas Fogg e o impagável Cantinflas no papel de seu criado Passepartout? Quem não se lembra de “Miguel Strogoff”, o fiel correio do Czar, das “Cinco Semanas em Balão”, das viagens ao fundo do mar e ao centro da Terra, do canhão que enviava um projétil tripulado “Da Terra à Lua”, do capitão Nemo com seu submarino Nautillus, escondido nas cavernas de “A Ilha Misteriosa”? E do misteriosíssimo gás do Doutor Ox? E das “Atribulações de um chinês na China”, da herança fabulosa do Doutor Sarrasin, em “Os quinhentos milhões da Begun” e tantos mais?
Lembro que aos 11 ou 12 anos de idade, no início do antigo Curso Ginasial, tive uma verdadeira febre de Júlio Verne. Devorava um livro dele por dia. Na biblioteca do Colégio Estadual de São Paulo, onde estudava, havia uma coleção enorme de livros dele, traduzidos para o português e editados em Portugal, no início do século XX. Tinham capa dura, cartonada, de cor vermelha. Estavam numa sessão meio esquecida da biblioteca e os professores não os recomendavam, porque não tinham a ortografia atualizada, mas ainda estavam na boa e saudosa “ortographia etymologica” de outrora.
Cada aluno podia retirar um livro por vez, na biblioteca circulante, com prazo de uma semana para a devolução. Eu pegava um livro e, já na manhã seguinte ia devolvê-lo, para trocar por outro. A idosa bibliotecária, Dona Elisa, ralhava comigo: – Menino, se você pegou o livro para ler não pode devolver sem ter lido. – Mas eu já li, respondia. Ela não acreditava que eu tivesse lido tão rapidamente e começava a me fazer perguntas sobre o enredo. Depois de três ou quatro sessões de interrogatório, ela afinal se convenceu de que eu lia rapidamente mesmo… A partir daí passei a ser um frequentador privilegiado da biblioteca, com Dona Elisa orientando nas minhas leituras infanto-juvenis, facilitando tudo e até me emprestando dois livros para ler nos fins de semana..
Pouco depois tive o primeiro contato com Verne no seu próprio idioma. Recordo que o primeiro livro que consegui ler inteiro em francês, ainda na 3ª. série do curso ginasial, foi precisamente “Le tour du monde en quatre-vingt jours”, numa versão resumida e escrita em francês fácil, para estudantes desse idioma. A excelente professora de francês que tínhamos fez nossa turma ler esse livrinho fascinante.
Um autor contemporâneo de Verne foi o alemão Karl May (1842-1912), cujos romances, aclimatados nos mais diversos locais do planeta e também sucessos de venda, não eram cientificistas, mas tendiam para o gênero das aventuras. Eram habitualmente escritos na primeira pessoa, em tom memorialístico, de modo que muitos leitores acreditavam piamente que o autor estava recordando aventuras em que ele próprio fora protagonista. Os conhecimentos geográficos, etnográficos e linguísticos de May não eram inferiores aos de Verne, e igualmente eram frutos de leituras e estudos, já que relativamente pouco viajou. Dos seus mais de 70 livros, cerca da metade foi traduzida para o português e tiveram edições no Brasil. Em sebos, ainda são encontráveis livros dele.
Não deixa de ser curioso que esses dois autores tenham despertado o interesse de gerações de leitores, escrevendo sobre locais que nunca visitaram. Tiveram muitos imitadores, desejosos de alcançar o mesmo sucesso.
Estas recordações que aqui deixo, me vieram ao espírito porque estou folheando uma velha publicação portuguesa, o “Almanaque Bertrand” de 1955, e nele encontrei uma notinha sobre um desses imitadores de Verne e de May, que descrevia em seus livros ambientes que nunca pudera conhecer. Perguntaram-lhe como é que podia descrever com tantos pormenores locais que jamais vira. O escritor respondeu com outra pergunta:
– E Dante, por acaso visitou o Inferno antes de escrever a Divina Comédia?

Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História

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